Enquanto tenta promover financiamento de matrículas da educação infantil em escolas que não sejam da rede pública, o governo tem reduzido os gastos destinados ao programa Proinfância, ano a ano, desde o início do mandato do presidente Jair Bolsonaro. De acordo com dados do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), no ano passado, foram pagos cerca de R$ 155 milhões, menos da metade do gasto registrado em 2019, quando foram pagos R$ 325,6 milhões. Já em 2021, a quatro meses do fim do ano, o recurso empregado foi de R$ 44 milhões, que não chega a um terço do valor de 2020, o que indica que o dinheiro para área pode sofrer mais uma baixa.
O levantamento leva em conta recursos de fato pagos pelo governo, incluindo ainda "restos a pagar", ou seja, valores que estavam previstos em anos anteriores e não foram efetivados. Nem o FNDE e nem o Ministério da Educação (MEC) explicaram, no entanto, o motivo da queda, ano a ano, nos recursos gastos no programa.
Comparando 2020 com 2018, antes da chegada de Bolsonaro ao poder, houve uma redução de 62% no montante de recursos repassados pelo FNDE no âmbito do Proinfância. Mesmo em 2019, primeiro ano de governo de Bolsonaro, quando não havia pandemia e as aulas presenciais estavam a todo vapor, o governo reduziu o gasto no programa em cerca de 21% em relação ao ano anterior. O Proinfância prevê que o governo ofereça assistência técnica e financeira para a construção de creches e pré-escolas no país. Além disso, os recursos destinados aos municípios e ao Distrito Federal também podem ser utilizados para adquirir mobiliário e equipar essas unidades escolares.
Na semana passada, o governo enviou ao Congresso a Medida Provisória do "Auxílio Brasil", o novo Bolsa Família. Além de instituir os parâmetros para o novo programa social do governo, a medida abre caminho para financiamento da educação infantil por meio de vouchers, uma espécie de cupom dado à família para custear a educação dos filhos na iniciativa privada; ou charter schools, que são estabelecimentos privados que recebem financiamento público para atender crianças de baixa renda. A medida foi duramente criticada por educadores e gestores municipais, que defendem que haja investimento na estrutura pública de educação infantil.
Os dados do FNDE também mostram que o número de obras paralisadas em creches é maior nesse ano que no ano passado: 305 em agosto de 2021 frente a 210 em 2020. Em relação às obras concluídas, enquanto em 2020 foram 309 (maior número desde 2018), neste ano apenas 118 foram finalizadas, o que indica que o governo precisaria mais do que dobrar esse valor em quatro meses para chegar ao número registrado no ano passado.
Ao GLOBO, o FNDE afirmou que a contratação e gestão das obras são atribuições do governo local. Questionados sobre maior número de obras paralisadas em 2021, o órgão afirmou que "o efeito da pandemia do Covid-19 foi um dos fatores que pode ter contribuído para intensificar as dificuldades de execução das obras pelos entes". O FNDE citou ainda outros fatores como descumprimento ou rescisão contratual; irregularidades na gestão anterior; embargo por decisão judicial; medidas administrativas locais; falha na execução de serviços; questões climáticas. O órgão, no entanto, assim como o MEC, não comentou sobre a queda, ano a ano, nos recursos gastos no programa.
— A pandemia pode justificar uma redução da execução e consequente paralisação e atraso nas obras, mas não justifica a redução de alocação orçamentária. A pandemia começou a acontecer somente em 2020 — pondera Heloisa Oliveira, Diretora de Relações Institucionais da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, organização especializada em educação infantil.
Para Daniel Cara, doutor em Educação pela USP e diretor da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a redução de repasses para o Proinfância indicam as prioridades do governo em relação à etapa.
— O governo já estava reduzindo recursos desde 2019, antes da pandemia. Essa queda está vinculada a uma aposta de paralisar expansão publica para garantir privatização da etapa. Isso fica evidente. Não tem a ver com a pandemia, é um projeto de governo — analisa Cara.
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De acordo com especialistas, as políticas voltadas para educação infantil têm sofrido forte impacto desde a aprovação da Emenda Constitucional que instituiu o teto de gastos públicos, em 2016. A partir daí, o problema foi se aprofundando. Além disso, o impacto em programas com o Brasil Carinhoso, criado em 2012 para transferir recursos aos municípios e ao Distrito Federal para custear a educação infantil, também prejudicou a área, uma vez que as redes encontraram dificuldades para ampliar o acesso à creche e manter novas matrículas. O GLOBO solicitou ao governo dados sobre o programa Brasil Carinhoso, mas as informações não foram disponibilizadas.
Um levantamento feito pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal apontou que em agosto do ano passado mais de 5 milhões de crianças, cerca de 46,7% das crianças entre 0 e 3 anos precisavam de uma vaga em creche no Brasil. O Índice de Necessidade de Creche (INC), desenhado pela instituição, identifica a parcela dessa população que mais necessita de creche na zona urbana, levando em consideração variáveis como renda, famílias com apenas um responsável, e mães economicamente ativas ou que o seriam caso pudessem matricular o filho na escola.
Dados do Censo Escolar 2020, feito pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), mostram que o Brasil tem 3.651.989 de vagas em creche, considerando a rede privada e a rede pública. O número é inferior ao registrado em 2019, quando havia 3.755.092 de vagas. A falta de vagas em creche é um dos principais motivos que afastam as crianças da educação infantil no país.
— Os números de pagamento ao Proinfância indicam que há redução de investimento na ampliação e abertura de novas creches. E é preciso que esse investimento de abertura de novas creches seja feito nas regiões, municípios e bairros onde há a maior demanda por vaga — afirma Heloisa Oliveira. — Também é importante garantir que uma vez construída (a creche), seja garantido o financiamento da vaga.
Atualmente, o Fundeb é responsável pelo repasse de recursos para manutenção das vagas. O fundo é a principal fonte de financiamento da educação básica no país. Uma portaria publicada em março pelo governo para 2021 mostra valores estimados entre R$ 4.521,86 e R$ 6.124,53 por aluno de creche de tempo parcial ao ano, a depender do estado. Na modalidade integral, os valores variam de R$ 4.898,68 e R$ 6.634,90 por aluno ao ano.
O Novo Fundeb, transformado em mecanismo permanente pelo Congresso e sancionado no ano passado, prevê aumento na complementação feita pela União de 10% para 23% ao longo de seis anos. O Fundeb prevê um valor mínimo por aluno e estados e municípios que não conseguem alcançar o patamar recebem aporte da União. Os 10% que a União já complementa atualmente permanecem como estão, dos 13% extras, 10,5% destinados para o valor aluno ano total, distribuído de acordo com a necessidade dos municípios, cerca de metade (5%) deve ser investido na educação infantil. Consultor de orçamento da Câmara dos Deputados, Cláudio Tanno afirma que essas mudanças no Fundeb podem contribuir para aprofundar a queda no orçamento para determinados programas.
— Vai existir uma tendência de o MEC ter cada vez menos recurso para mandar para estados e municípios, porque a complementação da União no Fundeb vai aumentar até 2026 — analisa. — Construir creche talvez seja a parte mais fácil. E para mantê-la? Contratar pessoal? A União dá um apoio muito pequeno em relação à demanda instalada. Muito dessa redução decorre disso também, obras que eram feitas e não tinham continuidade de utilização do imóvel, porque o município também não tem recurso para manutenção.
De acordo com o presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Luiz Miguel Martins Garcia, a opção do governo em reduzir os gastos no Proinfância mostra que o Ministério da Educação (MEC) se exime de sua responsabilidade em uma das etapas mais importantes da escolarização. Segundo ele, a proposta inserida na MP mostra que ao invés de investir na educação pública para abertura de vagas, o governo quer destinar recursos para educação privada.
— A falta de vagas em creche é consequência das ações que têm sido efetivadas, sobretudo, no que diz respeito aos pagamentos na educação infantil. Dessa forma não vai ter condição de atender o número de vagas. É muito estranho ter uma redução tão grande desse ritmo de investimento para geração de vagas e depois ter a criação de um programa de transferência de recurso (como o proposto pelo Auxílio Brasil)— critica. — Investir em educação infantil é o investimento de maior retorno a longo prazo.
O GLOBO questionou o MEC sobre a queda nos valores para o Proinfância e sobre o número de obras paralisadas e concluídas, mas não obteve resposta até o fechamento da edição.