A proposta que reformula o Bolsa Família, que foi batizado de Auxílio Brasil pelo atual governo, cria uma espécie guarda-chuva para vários programas sociais. Além de reformular a estrutura da ação de transferência de renda, a medida provisória (MP) que institui a nova política prevê a concessão de bolsa para atividades esportivas, iniciação científica, voucher creche, além de bônus para quem conseguir emprego.
A MP entregue ao Congresso, nesta segunda-feira, não prevê a fonte de custeio no novo programa, limitando-se a apresentar apenas o seu esboço. O governo quer elevar o valor do benefício médio pago às famílias: atualmente está em R$ 189, e deve chegar a R$ 300. Contudo, há várias lacunas na proposta do governo que vão interferir na composição final da bolsa que cada família receberá.
A principal é a indefinição é do reajuste dos valores da linha de pobreza, que estão em R$ 89 (extrema pobreza) e R$ 178 (pobreza). Além de ser a base para o pagamento do benefício básico, esses valores também definem quantas famílias terão acesso ao programa.
Esses números serão regulamentados posteriormente, assim como os novos auxílios que farão parte do programa. Não se sabe, por exemplo, o valor de nenhum deles e nem a fonte de recursos.
O ministro da Cidadania, João Roma, explicou que o reajuste do benefício básico será definido só no fim de setembro e que o plano da pasta é regulamentar os novos benefícios até outubro. Ele também afirmou que o reajuste não deve ser linear.
A bolsa para iniciação científica, por exemplo, dependerá também de normatização pelo Ministério de Ciência e Tecnologia, além do Cidadania.
"Apresentamos apenas os parâmetros do programa. A regulamentação dos auxílios deverá ocorrer entre setembro e outubro porque eles dependerão de recursos orçamentários", disse o ministro ao jornal O Globo.
Ele afirmou que o governo pretende pagar o benefício básico no novo programa em novembro, após o fim do auxílio emergencial. Destacou ainda que a Proposta de Emenda Constitucional (PEC), que mexe no prazo de pagamento dos precatórios, não é a tábua de salvação do programa, que ficará dentro do teto de gastos.
Para o diretor da FGV Social, Marcelo Neri, acumular tantos penduricalhos no novo programa não é sinônimo de efetivadade no combate à pobreza.
"Criar prêmio de performance escolar, voucher para primeira infância até fazem sentido, mas são coisas muito pequenas, mais peça de propaganda do que algo relevante. Dá impressão de que você está criando uma árvore de natal que não vai ficar de pé muito tempo", explica.
Reajustes indefinidos
A imprevisibilidade dos reajustes do programa é uma constante. Desde a sua criação, em 2004, o Bolsa Família passou por apenas sete reajustes dos benefícios básico e variáveis, e a maior elevação do valor médio foi um aumento de 40% entre 2011 e 2014.
O último decreto que para subir os valores do Bolsa Família foi publicado em 2018, no governo Temer.
Na avaliação do consultor de economia do Congresso, Pedro Fernando Nery, a intenção de reajustar o benefício é boa notícia, mas só ajuda parcialmente no combate à pobreza. Ele lembra que ainda no início de 2020, antes da pandemia, a fila de espera para ingresso no programa era grande, a despeito da melhoria da economia naquele momento.
Com a Covid-19 e a crise, que ampliou o desemprego e pressionou muito os preços, a situação ficou mais grave.
"Além do valor, é importante aumentar a cobertura. A extrema pobreza não estava caindo antes da pandemia, e agora ela dobrou. Quer dizer, a cobertura já não era suficiente antes. Colocar 3 ou 4 milhões de famílias não é muito, como tem se aventado", afirma Nery.
O pesquisador da área de Economia Aplicada do FGV IBRE, Daniel Duque, segue na mesma linha. Ele pondera que os programas sociais são limitados por um trilema envolvendo a cobertura, valor médio e custo fiscal.
"O Bolsa Família tinha certos aperfeiçoamentos a serem feitos de modo que equilibrasse mais o valor médio e a cobertura, porque você tem muitas famílias vulneráveis que não estão hoje recebendo o programa. Reajustar o benefício é importante, porque no período recente você teve maior inflação, principalmente dos alimentos que impacta bem fortemente a população mais pobre", complementa Duque.
"No entanto, em geral, aumentar cobertura, mesmo que com um valor médio mais baixo, costuma ter um benefício social marginal maior".
Para o diretor da FGV Social, Marcelo Neri, embora exista uma discussão de fundo sobre portas de saída e melhorias no programa, a que está ganhando é a assistencialista. Esse é o perfil das duas importantes marcas da gestão Bolsonaro na área – o pagamento do 13.º só Bolsa Família em 2019 e o auxílio emergencial.
"O ciclo eleitoral é muito claro na série de pobreza, que sempre cai no ano de eleição e sobe no ano seguinte. Agora tem uma discussão meio improvisada e esse ciclo eleitoral está vindo com força total",avalia.
A estrutura do Auxílio Brasil
Transferência de renda: outro formato
Assim como o Bolsa Família, o Auxílio Brasil é constituído de camadas: são categorias de benefícios que podem ser acumulados e vão se adaptar à realidade de cada família. São três opções:
- Benefício primeira infância: para famílias com crianças entre 0 e 3 anos na composição. O pagamento é por criança que se enquadre nessa faixa etária
- Benefício de composição familiar: voltado a famílias com crianças a partir de três anos e adultos até 21 anos incompletos, incluindo gestantes. O valor também será pago para cada integrantes da família que se enquadrar nesse parâmetro
- Benefício de superação da extrema pobreza: Assim como no modelo atual, o valor será calculado individualmente para cada família que, mesmo recebendo os benefícios anteriores, siga com renda per capita inferior à linha de extrema pobreza.
Novos benefícios
Além da estrutura tradicional do programa de transferência de renda, foram criados novos benefícios complementares, que não têm valores definidos. São seis:
- Auxílio Esporte Escolar: voltado para adolescentes entre 12 e 17 anos, será limitado a um benefício por família. O desenho diz que o pagamento será feito em doze parcelas mensais e uma parcela única. Não há definição do valor.
- Bolsa de Iniciação Científica Júnior: não há recorte de faixa etária para esse benefício. Cada estudante poderá receber uma bolsa, a ser paga em doze parcelas mensais e mais uma parcela única. Caso a família tenha mais de um estudante elegível para o benefício, será permitido o pagamento de uma bolsa para cada aluno, mas não será possível acumular o pagamento da parcela única.
- Auxílio Criança Cidadã (voucher creche): para atender crianças entre 0 e 48 meses de idade, o auxílio será pago aos responsáveis que obtenham uma fonte de renda, mas não encontrem vaga em crecehs públicas ou privadas da rede conveniada. O valor e o limite de acúmulo por família ainda serão regulamentados.
- Auxílio Inclusão Produtiva Rural: benefício que será pago por até 36 meses para agricultores familiares que estão inscritos do CadÚnico para incentivar a produção, doação e consumo de alimentos saudáveis pelos agricultores familiares.
- Auxílio Inclusão Produtiva Urbana: benefício a ser pago para famílias que estiverem na folha de pagamento do Auxílio Brasil e comprovarem vínculo de emprego formal.
- Benefício Compensatório de Transição: direcionado para famílias que já recebiam o Bolsa Família e tiverem perda no valor do benefício ao serem enquadradas no Auxílio Brasil, vai ser pago até que haja majoração do valor recebido pela família ou que não se enquadre mais nos critérios de elegibilidade.
Linhas de pobreza
A elegibilidade das famílias que poderão receber o novo benefício é definida com base nas linhas de pobreza e extrema pobreza. Atualmente, estão no patamar de R$ 178 e R$ 89. Esses valores não estão definidos na MP e serão reajustados posteriormente. É isso que vai definir quantas novas famílias poderão ingressar no programa. O texto da MP menciona que esses valores deverão ser reavalidos periodicamente, mas não estabelece esse prazo.