Desempregados com alta qualificação aceitam posições que requerem menos escolaridade
Reprodução/CUT
Desempregados com alta qualificação aceitam posições que requerem menos escolaridade

Na última década, a educação no Brasil avançou. Além de ter ampliado o acesso ao ensino superior tanto em instituições públicas quanto em privadas — por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), do Programa Universidade para Todos (Prouni) e do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) —, o país também conseguiu reduzir de 20,4% para 14,1% o analfabetismo funcional na população com 15 anos ou mais, na comparação entre 2009 e 2019, de acordo com dados do Ministério da Educação. Porém, com a crise econômica, o aumento da escolaridade ainda  não se reflete em melhores vagas de emprego .

Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD Contínua), elaborados pelo Idados, entre o 1º trimestre de 2015 e 2020,o percentual de trabalhadores com ensino superior em cargos de nível médio ou fundamental subiu de 27,1% para 31%. O maior crescimento do percentual de sobre-educados ocorreu no grupo de homens negros: de 33,6% para 37,9%.

"O país estava crescendo e havia a expectativa da necessidade de mais mão de obra qualificada . Com a recessão, não existe demanda para todas as pessoas com ensino superior. A faculdade deixou de ser um diferencial", analisa a pesquisadora do Idados, Ana Tereza Pires. "Outras habilidades passaram a importar, como idiomas e facilidade com a tecnologia. Acaba sendo mais difícil para a população pobre, que entrou depois na universidade, conseguir competir com pessoas de alta renda, que desde crianças estudam em colégios bilíngues", diz.

Esse é o caso do técnico em telecomunicações, Alexandre dos Santos Amaral, de 47 anos. Filho de mãe solteira, criado com mais três irmãos, ele teve que começar a trabalhar cedo e só adulto conseguiu completar o terceiro grau, por meio de um curso de tecnólogo. Amaral até chegou a trabalhar na área, mas foi demitido em 2016.

Depois de três anos fora do mercado, aceitou uma posição de separador em um Centro de Distribuição de Alimentos para ganhar menos de 40% do salário que recebia em sua área de formação.

"Eles querem os mais qualificados. Não importa se é para puxar um pallet ou pegar peso. Esse funcionário vai ser aproveitado para alguma coisa, seja para acumular funções ou para ocupar um cargo maior futuramente. É mais fácil do que fazer uma nova seleção", opina o técnico em telecomunicações: "Entrei como separador mas, por saber mexer com informática, me aproveitaram para ser conferente, e o salário não mudou".

Uma espera que parece não ter mais fim

Enquanto os mais qualificados e aceitam posições mais baixas para ter algum tipo de renda, os trabalhadores com pouco estudo ficam de mãos vazias e encontram cada vez mais dificuldades para se recolocar. O auxiliar de serviços gerais, Leandro Gonçalves do Amaral, de 40 anos, é um exemplo. Com apenas o ensino fundamental completo, foi mandado embora durante a pandemia e enfrenta resistência para achar uma nova oportunidade.

"Nem para entrevista estou sendo chamado. Apesar da vontade de estudar, a prioridade na minha vida sempre foi o trabalho porque precisava pagar as contas", diz.

No Estado do Rio de Janeiro, segundo levantamento da Fecomércio-RJ, com base na Relação Anual de Informações Sociais de 2019 (Rais), enquanto o percentual de trabalhadores formais de Comércio e Serviço com ensino médio completo passou de 41,20% para 51,66%, entre 2010 e 2019, o número de empregados com fundamental completo caiu de 16,27% para 9,81%. No mesmo período, a quantidade de indivíduos que atuavam nesse setor com ensino superior também cresceu, indo de 15,53% para 19,30%.

"Quanto maior a escolaridade, os funcionários têm mais desenvoltura para apresentar produtos e maior capacidade para realizar tarefas adicionais", opina a economista Roberta Tomás.

Mais robôs e menos empregos

Entre 2009 e 2019, o nível de qualificação na indústria cresceu consideravelmente. O número de trabalhadores com superior completo subiu de cerca de 625 mil para mais de um milhão, o que equivale a um aumento de 55,79%. Em contrapartida, a quantidade de pessoas com grau de instrução inferior ao ensino médio caiu de modo expressivo: em dez anos, dos 688 mil empregados com a 5ª série (6º ano) completa, por exemplo, sobraram 304 mil.

A troca de perfil no segmento, segundo o diretor-geral do Senai, Rafael Lucchesi, se deve à modernização da indústria, com maior uso de máquinas no processo de produção.

"Com a evolução do padrão técnico, há uma redução de postos de trabalhos nas empresas. Todas as atividades não cognitivas, repetitivas, serão substituídas por algoritmos e por inteligência artificial. Esse fenômeno vai substituir pessoas com menos escolaridade por outras de perfil mais técnico", avalia.

Apesar da recessão , ele acredita que técnicos com formações transversais nas áreas de automação, internet das coisas e big data não terão dificuldade para encontrar uma vaga.

Qualificação não significa salário maior

Entrevista com Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da USP:

O que está acontecendo no Brasil: o nível de exigência das vagas está maior, ou há poucas oportunidades e elas estão sendo preenchidas pelos mais qualificados?

Esse é um problema contínuo no país. Está acontecendo uma crise de emprego, que faz com que as empresas escolham profissionais com melhor formação e, até mesmo, qualificação superior à necessária para realização do trabalho, o que não significa melhores salários. Além de gerar um desencanto nesses profissionais rebaixados, deixa de fora do mercado os trabalhadores que têm menos estudo e que vão ter uma enorme dificuldade para se recolocar.

Outro fator é a forte mudança na divisão social do trabalho, decorrente das mudanças tecnológicas. Postos de trabalho são fechados, e o mercado passa a recrutar pessoas mais qualificadas que saibam lidar com as máquinas.

Como chegamos a esse ponto?

Na década de 2010, a demanda econômica gerava a necessidade de qualificar o trabalhador. A grande preocupação era aumentar a escolaridade dos brasileiros e, assim, elevar a renda média. Mas o crescimento não se manteve. Afetada pela desindustrialização radical, a economia passou a ser pautada na exportação de matéria prima, com base na agropecuária, e em serviços, setor que gera empregos de má qualidade. Com a saída das montadoras do país, estamos perdendo espaço em uma área que tínhamos destaque em relação à América do Sul: indústrias de automóveis e produtos eletrônicos. A gente está se acostumando a ser um país que não opta pelo desenvolvimento.

Se formos analisar o que tem acontecido no mundo asiático, apesar de eles não terem alcançado escala, eles formam cientistas e trabalhadores desde a educação básica. Isso tem um resultado enorme. Na década de 80, por exemplo, a China estava numa posição muito inferior ao Brasil e hoje é proprietária intelectual do 5G. A gente não pode perder o vagão do trem. Se isso acontecer, teremos mais desigualdade e fome.

E como reverter esse quadro para solucionar o problema?

O choque imediato é investir em ciência e tecnologia nas áreas em que o Brasil pode ser, de fato, competitivo, como biotecnologia e nanotecnologia. Se os investimentos no Butantan tivessem sido mantidos, anos atrás, o Brasil poderia ser hoje um dos páises a alavancar a vacinação mundial. Outra área que merece atenção é a do desenvolvimento sustentável. Isso é uma decisão política. Precisamos reordenar as prioridades. A riqueza maior, que são cérebros, a gente tem em quantidade suficiente para dar conta de um salto de crescimento. Só falta investir nas pessoas.

No longo prazo, é preciso focar na educação de base de maneira circular, porque é a partir dela que se formam cientistas. Essas pessoas têm que chegar ao ensino superior com maior preparo. Não há ainda interlocução entre educação, ciência, tecnologia e inovação, áreas que deveriam caminhar de maneira sistêmica.

    Mais Recentes

      Comentários

      Clique aqui e deixe seu comentário!