POR BÁRBARA VETOS
Grávida. Desamparada. Demitida de um de seus empregos uma semana após anunciar a gestação. Passou dois meses afastada para ter o bebê – menos do que uma licença maternidade garante por lei e sem receber nada por isso, já que era contratada como pessoa jurídica (PJ). Na volta, já havia alguém em seu lugar. Foi desamparada mais uma vez.
A história da ex-dentista Júlia Nascimento foi traumática o suficiente para que ela resolvesse abandonar a profissão e fosse em busca de uma nova área que trouxesse maior estabilidade. Seu único requisito: jamais voltar a ser PJ.
A odontologia, assim como tantas outras profissões, foi majoritariamente dominada pela onda da pejotização . Uma modalidade de contratação que se popularizou no Brasil a partir de 2017, com a Lei da Terceirização e a Reforma Trabalhista.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estima-se que, até abril de 2022, havia 12,5 milhões de trabalhadores sem carteira assinada no setor privado no Brasil – recorde histórico, com uma alta de 20,8% em comparação ao mesmo período no ano anterior. A maioria é contratada como pessoa jurídica. A modalidade permitiu uma maior flexibilização das relações de trabalho, sem que haja vínculos formais. “É muito mais barato para a empresa contratar um PJ. Só que até que ponto isso vai fazer bem para a sociedade e para os empregados?”, questiona Nascimento.
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Assim como a odontologia, outro setor que vem sofrendo com os impactos da pejotização é o da comunicação. De acordo com pesquisa realizada pelo portal Comunique-se, entre outubro e novembro de 2021, mais de 54% dos jornalistas entrevistados trabalhavam como PJ em redações por todo o Brasil. Em agências de comunicação, o número chegava a 61,5%. Movimento que vai na contramão das questões ESG, que têm sido utilizadas como bandeira pelas empresas que dizem se preocupar com o lado social da sigla.
Pejotização é benéfica para as empresas
Entre as vantagens para as empresas na contratação de profissionais PJ, estão a redução de custos e uma menor burocracia. Existe a possibilidade de os empregadores negociarem benefícios fora do contrato, mas Márcio Coelho, advogado trabalhista, explica que a empresa não tem obrigatoriedade de arcar com nenhum dos encargos trabalhistas garantidos pelo regime CLT, tais como FGTS, recolhimento do INSS, férias, 13º salário, entre outros.
“O que se pretende com a contratação PJ é gastar menos e aumentar o lucro empresarial”, enfatiza Coelho. Além disso, a empresa pode rescindir o contrato a qualquer momento, como foi o caso de Nascimento. “O risco é muito grande para o contratado, porque ele trabalha apenas pelo retorno do pagamento mensal.”
Algumas das críticas ao sistema não são ilegais do ponto de vista jurídico, como a demissão ou a falta de uma licença maternidade remunerada, mas acabam sendo entendidas como antiéticas por desconsiderarem questões mais humanas. “É um modelo muito cruel, nós nos sentimos substituíveis”, revela Nascimento. “Na minha opinião, a pejotização é só um meio dos empresários conseguirem fazer o que quiser com o funcionário, sem responsabilidade alguma sobre isso.”
Precarização e desemparo gerados pela pejotização
A ex-dentista conta que o mercado de odontologia é muito difícil no quesito empregabilidade. Segundo ela, ou o profissional abre sua própria clínica e se torna autônomo – o que ela diz ser muito caro –, ou ele trabalha prestando serviço em diferentes clínicas, como pessoa jurídica. É raro surgirem vagas para CLT ou concursados.
“Foram quatro anos de faculdade, um ano de pós-graduação, e hoje eu não exerço mais minha profissão pelo modelo de trabalho que ela propõe”, desabafa Nascimento. “Se você não tem condição de abrir uma clínica própria, ou você se submete a trabalhar para os outros nesse modelo, ganhando pouquíssimo, ou você sai.”
Logo após ter sido dispensada do segundo emprego – em que garantiram que ela poderia retornar assim que voltasse da licença –, seu marido, que também atuava como PJ, porém em outra área, foi mandado embora sem direito algum. “Se fossemos CLT, teríamos recebido nossos direitos, mas não tivemos nada. Éramos apenas nós dois e a bebê para sustentar, foi bem difícil.”
Coelho acredita que a pejotização pode acabar precarizando mais algumas profissões. “Premidos pelas circunstâncias, as pessoas se sujeitam a qualquer tipo de atividade remunerada”, comenta. “Considero a regulamentação oportuna, mas friso que a pejotização deve tornar extinto todos os direitos trabalhistas com o passar do tempo.”
“Eu não quero viver o resto da minha vida com medo”, diz ex-dentista sobre vagas PJ
Após as dificuldades enfrentadas com a demissão e um bebê a caminho, Nascimento voltou a fazer faculdade, dessa vez de administração, e passou a trabalhar em um escritório na área de global mobility. Por enquanto, ainda é estagiária, mas diz que só volta ao mercado de trabalho como CLT daqui para a frente. “Eu vejo muita gente falando que se dá bem no modelo PJ, mas não é para mim. Eu preciso de direitos, preciso de uma coisa garantida”, comenta. “Eu fiquei traumatizada e não quero viver o resto da minha vida com medo.”
Na época, ela até pensou em processar a clínica, mas não levou adiante porque achou que não valeria o desgaste, já que estava enfrentando um momento delicado na vida pessoal. No entanto, Coelho explica que muitas pessoas contratadas como PJ têm buscado a Justiça do Trabalho para o reconhecimento do vínculo empregatício e suas decorrências. Segundo o advogado, “há evidente distorção não corrigida pela Lei, que permite a contratação de pessoas jurídicas em situação de evidente desacordo com as leis trabalhistas”.
A ex-dentista concorda que seja necessária a regulamentação do modelo para que ele continue existindo. “Me pergunto até hoje como puderam demitir uma pessoa recém-formada e grávida, em clara situação de vulnerabilidade.”
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