POR BÁRBARA VETOS
Alterações no sono, sentimento constante de angústia, perda de prazer em atividades cotidianas, taquicardia ou dores no peito, manchas na pele, irritabilidade, medo e tristeza. Esses são alguns indícios de uma saúde mental em risco – e, cada vez mais, esses sintomas têm relação com situações da vida profissional. “Minha rotina de trabalho era bem desgastante, eu sentia que estava enlouquecendo”, revela Letícia Ruiz*, hoje com 35 anos, que viveu isso na pele quando trabalhava na área de contabilidade. Problemas como os enfrentados por Letícia têm se tornado cada vez mais comuns.
O debate sobre saúde mental no ambiente corporativo tomou corpo principalmente depois da pandemia. Em 2019, 15% dos adultos, cerca de 1 bilhão de pessoas em idade ativa, apresentavam algum transtorno mental, segundo o Relatório Mundial de Saúde Mental da OMS. Durante o período pandêmico, houve um aumento de 25% nos casos de ansiedade e depressão.
De acordo com Maria Barreto, CRO da Zenklub , empresa de benefício coorporativo para saúde mental, esse agravamento não foi um problema exclusivamente da pandemia: a situação continua sendo verificada entre os brasileiros. “É por isso que precisamos seguir trabalhando a prevenção e conscientização do tema. O tratamento é muito mais caro e doloroso”, reforça.
No caso de Letícia, os problemas ocorreram antes do período de emergência sanitária, mas guardam relação direta com as situações de trabalho. Foi só depois de experiências bastante negativas em que viu sua saúde em risco, que resolveu dar vazão aos seus verdadeiros sonhos e mudar de área de atuação.
É claro que ela já vinha percebendo como sua vida havia virado de cabeça para baixo. Sem tempo para nada, exausta o tempo todo, sobrecarregada e sem forças para voltar ao trabalho no dia seguinte, seu dia a dia havia se tornado insustentável para uma pessoa tão jovem.
Em uma de suas primeiras experiências profissionais, Letícia conta ter passado por ofensas, xingamentos e abusos verbais. “Meu chefe era grosso e arrogante. Se algo não estivesse do jeito que ele queria, ele ia pegar tudo, jogar em cima da sua mesa, e te chamar de incompetente para baixo”, conta. Receber insultos fazia parte de sua rotina.
Letícia revela que se sentia muito humilhada. Seu chefe a xingava na frente do escritório inteiro, gritando palavrões. Em um episódio como esse, depois das diversas ameaças de demissão, pediu ao RH para ser desligada. Ela diz que não foi a única funcionária a passar por situações assim.
Falta de diálogo
Um estudo realizado com 3,4 mil pessoas em 10 países pela The Workforce Institute UK mostrou que as atitudes dos líderes das empresas têm um impacto tão grande na saúde mental da equipe, que equivale ao efeito que nossos familiares e pessoas que convivem conosco podem nos causar. Os dados mostram que levar sentimentos de preocupação para casa ou sofrer por uma discussão com o seu superior é mais habitual do que imaginamos.
Mas essa relação não está tão aberta ao diálogo quanto deveria. Apesar dos avanços, ainda é difícil tratar sobre saúde mental no ambiente corporativo. É o que revela a pesquisa O futuro do trabalho e o bem-estar digital: protegendo os funcionários em um mundo moldado pela covid-19 (em tradução livre), da Economist Intelligence Unit em parceria com a Allianz Partners. Entre os mil entrevistados, 61% não tiveram uma boa conversa com seus gerentes sobre saúde mental durante a quarentena.
“Quando estamos em equilíbrio emocional, conseguimos lidar melhor com estresse, tomar decisões mais assertivas, ter relacionamentos mais saudáveis e um maior bem-estar”, explica a CRO da Zenklub. Caso contrário, há uma perda de qualidade de vida. “Isso pode gerar dificuldades no trabalho, nos estudos, nos relacionamentos pessoais e até mesmo na saúde física.”
Os reflexos da fusão entre vida pessoal e profissional
Mesmo diante de tantos indícios de que não estava bem, o estalo para Letícia perceber a necessidade de mudança de rotina só veio após uma consulta com um médico endocrinologista. Na época, trabalhando em uma das maiores empresas do ramo financeiro, Letícia notou o surgimento de acne e melasma em seu rosto, além de queda de cabelo. “Apareceram duas faixas pretas abaixo da região dos olhos e um ‘V’ na minha testa que ia até o meio do nariz. Eu tinha buracos de estresse na cabeça, de cair cabelo, e as vezes de ficar arrancando e quebrando.”
“A minha saúde mental foi para o lixo. Eu acordava para trabalhar, saía do trabalho para beber, para poder dormir pesado e acordar cedo para trabalhar de novo”
Nesse período, Letícia relata que misturava remédio com bebida alcoólica para poder dormir. Foi uma época difícil até mesmo para seus amigos. “E era todo mundo no escritório, não era só eu, porque as demandas são infinitas”, lembra.
Segundo o relatório Workplace Wellness 2019, ou Bem-estar no ambiente de trabalho (em tradução livre), da Capita, 25% dos entrevistados aumentaram o consumo de álcool e 15% elevaram o consumo de cigarros.
O que era para ser uma consulta simples, apenas para identificar a razão do surgimento das manchas e da queda de cabelo, foi um choque de realidade. “Seu nível de estresse está extremamente alto. Você está tensionando tanto, que daqui a pouco seu corpo desliga”, foram as palavras que ouviu do médico. A partir daquele atendimento, ele a encaminhou para vários outros especialistas, com a justificativa de que, se ela continuasse naquele ritmo, não passaria dos 30 anos. Além disso, deveria começar a praticar exercícios físicos, para ajudar no seu quadro de saúde.
A preocupação do médico não era desproporcional. Segundo dados da OMS e da Organização Internacional do Trabalho (OIT) referentes ao ano de 2021, cerca de 750 mil pessoas morrem todos os anos de AVC e parada cardíaca isquêmica, devido às longas horas de trabalho. Isso é fruto do esgotamento e adoecimento emocional dos trabalhadores que atuam em ambientes profissionais abusivos.
Apesar do susto, Letícia considera que o endocrinologista com quem se consultou foi uma figura essencial em seu caminho para que não sofresse consequências ainda mais graves. “Ele me tirou de uma crise. Eu ia desligar e sabia disso. Nesse dia, eu saí do hospital e pensei ‘por que estou fazendo isso comigo?’”.
Relações abusivas e sentimento de culpa
Uma pesquisa realizada pelo Mental Health American em 2019 mostrou que, dentre os quase 10 mil entrevistados, 55% dos trabalhadores sentem medo de tirar dias de folga para cuidarem da saúde mental e quase 70% acham melhor não falar sobre esse assunto com seus empregadores. Sentir culpa por precisar se ausentar e reprimir os sintomas até o último minuto também são um indício de como o debate da saúde mental ainda precisa avançar e muito.
“Tem muita gente que nem sabe o que está sentindo, nem sabe que é por causa de trabalho. Acha que aquela é a rotina de verdade”, comenta Letícia. Ao mesmo tempo em que aceitar e relevar as circunstâncias pelo desespero em manter-se empregado é real, a dificuldade em reconhecer situações e ambientes abusivos também é uma questão latente. “Mas eles não pagam sua saúde mental, seu desgaste, o tempo que você perdeu de ficar com sua filha à noite”, completa Letícia.
Sobrecarga é um dos principais agravantes na saúde mental
O relacionamento conturbado com os líderes não é o único fator que pode afetar a vida pessoal e profissional de alguém. A sobrecarga também ocupa esse papel, como fruto de uma quantidade infinita de demandas.
“Era uma pressão muito grande: prazos muito curtos, relatórios de mais de 150 páginas para fazer análise de número. Extremamente cansativo, trabalhava as vezes até de domingo.” Letícia conta que nunca acabou o expediente no horário em que foi contratada para trabalhar.
A pesquisa Saúde mental pela perspectiva das pessoas colaboradoras de 2022, realizada pela Talenses Group em parceria com a plataforma Wellz, mostra que 43% das pessoas disseram se sentir sobrecarregadas no trabalho. Enquanto isso, 31% se sentiam pressionadas para atingir os resultados e metas da empresa e 30% sentiam que precisavam estar disponíveis o tempo todo para atender demandas.
“[Meu chefe] pedia coisas com prazos em que seria impossível entregar, nem se eu virasse [a noite acordada]. E quantas vezes eu virei… De não ir para a minha casa, de ter que dormir em um hotel na frente da empresa ou ter que ir embora de táxi, porque já eram 2 horas da manhã e às 8 eu teria que estar lá novamente”, revela a jovem.
Nesse período, Letícia já estava no processo de mudar de carreira e, consequentemente, de vida. Mas como continuar na nova faculdade sem poder frequentar às aulas por conta dos horários estendidos no trabalho? “Eu já estava no meu terceiro ano, ia entrar para fazer estágio e tive que trancar [a matrícula] por dois anos, que foi o período em que fiquei na empresa.” Com seus horários sendo constantemente desrespeitados, Letícia via seus sonhos sendo interrompidos e sua saúde indo por água abaixo.
“Quantas vezes eu saí às 5 horas da manhã do escritório, para ir ao hotel dormir e esperar dar 10 horas, para o shopping abrir e eu poder comprar roupa para trabalhar?”
A jovem relata que sentia que seus superiores tentavam compensarseu esforço e exaustão pagando táxis, estadias em hotéis de luxo e pedindo comida por delivery quando os funcionários ficavam até tarde. “Mas eu não queria dormir no hotel. Não ligo para isso”, comenta. Para ela, foram dois anos e meio de uma fase muito difícil, em que ela tomava remédios para dormir e chorava para levantar da cama. “Tenho certeza de que aquilo foi um burnout, mas ainda não era muito falado na época.”
Burnout atinge cerca de 32 milhões de brasileiros, diz OMS
Não é de hoje que a Síndrome de Burnout ou Síndrome do Esgotamento Profissional afeta a vida de tantas pessoas. No entanto, somente no dia 1º de janeiro de 2021 foi reconhecida pela OMS como doença ocupacional e, consequentemente, passou a ser mais abordada nos meios sociais e de comunicação. De acordo com pesquisa realizada pela Universidade de São Paulo (USP) em 2021, uma em cada quatro pessoas sofre com o transtorno no Brasil. A maioria delas tem menos de 30 anos.
Conhecido por ser o último estágio do desgaste físico e mental, o burnout pode ser evitado se outros sintomas forem identificados previamente, como aqueles relacionados a ansiedade e depressão. Ambos são transtornos comuns, que não necessariamente têm como causa o ambiente e as relações de trabalho, mas que podem sinalizar que algo não vai bem e que a pessoa precisa de ajuda.
O Brasil é considerado o país mais ansioso da América Latina e do mundo. De acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), 18,6 milhões de pessoas convivem com o transtorno no país, o que corresponde a 9,3% da população. A faixa etária dos 18 a 24 anos é a mais afetada. Ao todo, a ansiedade atinge 300 milhões de indivíduos.
Em relação à depressão, o cenário não é muito diferente. O relatório Depressão e outros transtornos mentais 2022, da OMS, revela que 5,8% da população brasileira sofre com o transtorno. O dado faz com que o Brasil seja o país latino-americano com mais casos. As mulheres são as mais atingidas.
Saúde mental também faz parte da temática ESG
Apesar de a sigla ESG ser muito famosa no meio corporativo, por muitas vezes, a letra ‘S’ acaba sendo esquecida ou tornando-se muito abstrata, já que temas financeiros e ambientais costumam ser o foco das empresas que buscam atingir maiores níveis em rankings ESG.
“As pessoas acham que o ‘S’ é fazer trabalhos sociais, mas, na verdade, é sobre você cuidar das pessoas. Trabalhar a saúde emocional está totalmente relacionado a isso”, explica Maria, do Zenklub.
A profissional reforça que o recomendado é que essas questões não sejam abordadas apenas para o tratamento de casos específicos, mas que o tema já esteja presente na cultura da empresa, atuando de forma preventiva e reduzindo impactos futuros. Caso contrário, ela ressalta que os riscos de aquele funcionário começar a faltar, ter conflito interpessoal, sensação de esgotamento e baixo desempenho são maiores.
Além de comprometer a saúde do trabalhador, isso trará mais gastos para a empresa. Maria lembra que as instituições também estão sujeitas à perda de credibilidade e risco de imagem, o que pode custar caro, direta ou indiretamente. “É por isso que cada vez mais as empresas têm se atentado às estratégias e importância de trabalhar o tema.”
Segundo a OMS, cerca de 12 bilhões de dias de trabalho são perdidos a cada ano para a depressão e a ansiedade, o que gera um custo de quase US$ 1 trilhão à economia global. O estudo ainda mostra que, a cada US$ 1 investido em ações que promovem melhorias na saúde e bem-estar mental dos trabalhadores, US$ 4 são percebidos em ganhos com o aumento da produtividade.
Mas será que as empresas têm feito o suficiente?
Com tantas campanhas de valorização dos cuidados com a saúde mental, como Janeiro Branco e Setembro Amarelo (meses de conscientização e de prevenção ao suicídio), é de se pensar: essas ações e mudanças vem realmente acontecendo no mundo corporativo?
A CRO do Zenklub avalia que, desde a pandemia, as pessoas têm olhado com mais atenção para essas questões. “Foi naquele momento que as empresas passaram a comprar e consumir de verdade uma alternativa para os seus colaboradores.” Segundo Maria, essa maior conscientização tem levado à utilização de serviços de apoio à saúde mental.
A profissional relata que, até aquele momento, a cobertura dos planos de saúde para as terapias era limitada a um máximo de 12 sessões. “É muito pouco. Isso para qualquer situação, mas para quem está passando por uma situação pandêmica, isolada em casa, é um absurdo.”
Um estudo realizado pela Oracle e pela Workplace Intelligence em 2020 revela que, apesar de 52% dos entrevistados brasileiros afirmarem que houve um aumento no número de serviços de apoio à saúde mental fornecidos pelas empresas, a maioria (84%) ainda acredita que há mais a ser feito para lidar com essas questões.
Além disso, 92% dos trabalhadores brasileiros gostariam que seu trabalho oferecesse tecnologia de apoio à saúde mental, como acesso a recursos de saúde por autoatendimento (43%), serviços de aconselhamento sob demanda (43%), ferramentas de monitoramento de saúde (45%), acesso a aplicativos de bem-estar ou meditação (43%) e chatbots para responder a perguntas relacionadas ao tema (26%).
“Eu acho que é importante ter esse debate sobre saúde mental também dentro das empresas, porque faz com que todos tomem algum tipo de consciência”, enfatiza Letícia. Ela defende que todas ofereçam esses recursos e que o tema seja uma prioridade, dentro e fora dos escritórios. “Se eu não tivesse tomado essa consciência, eu teria ‘fundido o motor’ lá mesmo. Talvez hoje eu não estivesse aqui.”
*O nome foi alterado para preservar a identidade da profissional.
Home office e desigualdade de gênero
As mudanças com a entrada e a saída do home office, no início e no fim da pandemia, também foram responsáveis pelo agravamento das questões de saúde mental.
Em um primeiro momento, a nova modalidade de trabalho trouxe um clima de incertezas. Era necessário se adaptar, estabelecer uma rotina diferente e lidar com desafios até então desconhecidos. Nem todos os funcionários contavam com um ambiente favorável dentro de casa e muitos relataram que trabalhavam mais horas do que no escritório.
Uma pesquisa realizada em 2021 pela Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e pela Fundação Instituto de Administração (FIA) mostra que 45% dos entrevistados estavam trabalhando acima de 45 horas semanais. Entre eles, 23% afirmaram trabalhar entre 49 e 70 horas, e 6% relataram passar de 70 horas. De acordo com a legislação trabalhista, a jornada de trabalho deve ser de 44 horas semanais.
As tarefas relacionadas à maternidade, em paralelo com o trabalho doméstico, fizeram com que as mulheres, que já lidam com uma jornada dupla, ficassem ainda mais sobrecarregadas. O estudo Um Olhar Aprofundado Sobre Saúde Mental nas Organizações Brasileiras, realizado pela Vittude, revela que, enquanto 6% dos homens apresentam níveis severos ou extremamente severos de estresse, entre as mulheres o índice é de 10,4%.
O mesmo acontece com ansiedade e depressão: as porcentagens são maiores entre o sexo feminino. A ansiedade extrema afeta 15% das mulheres (9% os homens) e a depressão em níveis mais graves acomete 10% delas e 9% deles. O levantamento foi feito com base na aplicação de escalas psicométricas em mais de 25 mil trabalhadores de 22 empresas.
Ao mesmo tempo, não é como se a volta ao modelo presencial fosse sanar essas questões. O retorno ao escritório também levou ao aumento dos sintomas de ansiedade. Uma pesquisa do LinkedIn em 2021 mostrou que, dos 2.254 respondentes, 24% disseram sentir medo e receio da retomada do presencial, e 24% disseram se sentir inseguros. Entre os motivos estão a piora de qualidade de vida, perda de tempo, problemas de deslocamento, produtividade e saúde.
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