A nova sistemática da meta de inflação: o que muda?
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A nova sistemática da meta de inflação: o que muda?


Há um ano, o ministro  Fernando Haddad anunciava a nova sistemática para a meta de inflação: o Banco Central não deveria mais perseguir a meta dentro do ano calendário, mas de maneira permanente. Passou-se um ano, e somente agora o decreto regulamentando a mudança foi publicado no Diário Oficial. Não foi coincidência: agora em junho, o CMN (ministro da Fazenda, ministro do Planejamento e presidente do BC) reúne-se para determinar a meta de inflação para daqui a três anos. Como, há um ano, já havia sido anunciado que essa meta anual deixaria de existir, seria no mínimo estranho reunir o  CMN para determinar uma meta que, a rigor, não existe mais. O decreto veio formalizar a decisão já tomada.

Este é o último bloco de um edifício muito sólido, que começou a ser construído há 25 anos, mais especificamente quando o decreto 3.088, de 21/06/1999, criou o sistema de metas de inflação como substituto ao controle cambial, sistema informal que vinha fazendo o papel de âncora do Real desde março de 1995. Com a flutuação do Real em janeiro de 1999, o sistema de metas de inflação foi adotado como a nova âncora das expectativas de inflação.

No início, as metas para a inflação sofreram muitas modificações. Na primeira reunião do CMN, em junho de 1999, foi determinada uma meta de 8% para 1999, 6% para o ano 2000 e 4% para 2001. A partir de então, as reuniões do CMN passaram a determinar a meta para dali a dois anos, sempre tomando como referência o ano-calendário. Assim, a reunião de junho de 2000 determinou a meta de 2002 em 3,50%, e a de 2001 determinou a meta para 2003 em 3,25%. Note que, desde o início, o objetivo era chegar a uma meta de 3,00% como é hoje.

No entanto, as turbulências de uma economia que mal havia saído das fraldas da hiperinflação adiaram esse objetivo. Em 2002, ocorreu a primeira revisão de meta, a de 2003 (que havia sido estabelecida no ano anterior), que passou de 3,25% para 4,00%, ao mesmo tempo em que se estabeleceu a meta de 2004 em 3,75%. Em 2003, a meta foi novamente modificada, desta vez de 3,75% para 5,50% em 2004. Esta foi a segunda e última vez que a meta foi modificada, pois chegou-se à conclusão que, claro, em um sistema em que a meta muda, fica difícil ancorar as expectativas. Seria como tentar chutar a gol com a meta mudando de lugar o tempo inteiro.

Na reunião do CMN de junho de 2003, além de mudar a meta de 2004, estabeleceu-se a meta de 2005 em 4,50%. Esta meta permaneceria em vigor, ano após ano, pelos 14 anos seguintes, até a reunião do CMN de 2017. Nessa reunião, a segunda após o impeachment de Dilma Rousseff, decidiu-se duas coisas: 1) determinar a meta para dali a três anos, e não mais dois anos e 2) começar uma escadinha declinante para a meta de inflação, com o objetivo de chegar aos 3,00% que se queria lá no início. Assim, em 2017, estabeleceu-se a meta de 2019 em 4,25% e para 2020 em 4,00%. Nos anos seguintes, a meta foi sendo reduzida, até chegarmos na reunião de 2021, quando se determinou que a meta para o ano da graça de 2024 (sim, este ano!), a meta seria, finalmente, de 3,00%. Então, este é o primeiro ano, desde o início do sistema de metas de inflação, em que temos uma meta de 3,00%.

No início do  governo Lula, houve uma intensa discussão sobre a adequação dessa meta ao caso brasileiro. Houve economistas de renome defendendo e atacando os 3%. O fato é que os 3% nos alinham a países como Chile, Colômbia e México, todos pertencentes à OCDE. Os críticos temem que a taxa de juros praticada pelo BC deverá ser muito mais alta do que se a meta fosse menos apertada. Isso é verdade no curto prazo, mas no longo prazo, o que importa é a taxa de juros real da economia, e uma meta de inflação mais alta só nos fará ter, ao longo do tempo, uma taxa de juros nominal mais alta, pois a taxa de juros real depende de fatores estruturais que independem da meta de inflação.

No final, o governo Lula decidiu por manter a meta de 3%, e estabeleceu esta meta como um objetivo permanente, já não vinculado a um determinado ano-calendário, o que somente foi formalizado agora, com o  decreto 12.079, de 26/06/2024. Este foi um ganho institucional imenso, pois solidificou o entendimento de que esta é a meta de inflação “para sempre”. Segundo o decreto, qualquer modificação na meta somente pode ser realizada com, no mínimo, três anos de antecedência, o que elimina a possibilidade de mudanças oportunísticas como as que aconteceram no início dos anos 2000.

E como vai funcionar daqui em diante? A meta será verificada mensalmente, sempre olhando os 12 meses anteriores. Se a inflação, medida pelo IPCA, ultrapassar o topo da meta (ou furar o piso, o que é mais raro) por 6 meses seguidos, o BC deverá publicar uma carta justificando o não cumprimento da meta e estabelecendo um prazo para que a inflação volte para a meta. Se depois desse prazo a inflação não retornar à meta, o BC deverá novamente justificar-se.

Como teria funcionado esta nova sistemática se tivesse sido adotada desde o início? Primeiramente, vamos ver como foi a performance do BC até hoje, com metas em anos-calendário. É o que podemos observar no gráfico a seguir:

Sistema de metas anuais
Gráfico
Sistema de metas anuais


As barras em vermelho indicam os anos em que o BC “perdeu” o topo ou o piso da meta. Neste último caso, temos somente o ano de 2017, quando a inflação foi de 2,95% contra um piso de 3,00%. O desempenho até que não foi ruim, com apenas 7 anos de descumprimento em um total de 24 anos, ainda que tenha havido uma “mãozinha” no início, com as mudanças de meta.

Como se daria esse acompanhamento com a “meta móvel de 12 meses”? É o que podemos acompanhar no gráfico a seguir:

Sistema de meta móveis
Gráfico
Sistema de meta móveis


Neste gráfico, as barras para cima (em vermelho) significam períodos em quem a inflação ficou acima do topo da meta, e as barras para baixo (em verde) períodos em que a inflação ficou abaixo do topo da meta. Para manter a simplicidade do gráfico, desconsideramos o pequeno período em que a inflação ficou abaixo do piso da meta. Como houve mudanças de meta de inflação ao longo do tempo, fizemos uma interpolação linear da meta ao longo do ano da mudança. Assim, por exemplo, no ano 2000 a meta era de 8% e em 2001 era de 6%. Mas esses 6% valem apenas para os 12 meses acumulados em dezembro de 2001. Assim, ao longo de 2001, a meta veio caindo linearmente de 8% para 6%.

Se o atual sistema estivesse vigente durante este período, o BC teria que escrever uma carta de justificativa, no mínimo,em março de 2002, em setembro de 2011, em junho de 2015, em dezembro de 2017 (furo do piso da meta) e em agosto de 2021. Cinco cartas, ao invés das sete na metodologia anterior. Talvez fossem mais, dado que o BC poderia errar o horizonte de retorno da inflação para baixo do topo da meta.

Enfim, do ponto de vista prático, a nova sistemática teria mudado pouco o passado. Mas do ponto de vista conceitual, o novo método faz mais sentido e dá mais segurança ao sistema de metas de inflação, ao dar um horizonte permanente para a política monetária. Atualmente, existe uma discussão bastante acirrada no mercado a respeito da postura da nova diretoria do BC, indicada, em sua maioria, pelo governo Lula. A regra da meta contínua deixa menos margem de manobra para “operar” a inflação dentro do ano-calendário, o que vai exigir da diretoria do BC, ainda mais do que hoje, disciplina em relação à política monetária.

Como sabemos, a previsibilidade é essencial para que os agentes econômicos possam se planejar, e tudo o que colabora com essa previsibilidade é bem-vindo. Espero, sinceramente, que as discussões em torno da meta de inflação sejam coisa de um passado cada vez mais distante.

** Marcelo Guterman é engenheiro de produção pela Escola Politécnica da USP e Mestre em Economia e Finanças pelo Insper. Possui o certificado CFA – Chartered Financial Analyst. Ministrou vários cursos de finanças ao longo dos últimos 35 anos, incluindo Gestão de Investimentos no programa do MBA de Finanças do Insper. Atuou em várias multinacionais de administração de fundos de investimento nas últimas décadas, como gestor de recursos e especialista de investimentos. É autor dos livros “Finanças do Lar” e “Descomplicando o Economês".

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