Relatório Focus: o vilão da vez
Agência Brasil
Relatório Focus: o vilão da vez


A ênfase que a diretoria do Banco Central tem colocado nas expectativas de inflação vem incomodando muita gente no governo. O Ministério Público junto ao TCU chegou ao ponto de iniciar um processo em que questiona uma suposta subserviência do BC a estas expectativas. Afinal, quem são as pessoas por trás dessas “expectativas”, e que têm o poder de guiar a autoridade monetária?

Antes de responder a estas questões, vamos recordar o funcionamento do sistema de Metas de Inflação. Entre 1994 e 1998, o Plano Real teve como âncora informal o dólar. A taxa de câmbio entre o real e o dólar era controlada pelo Banco Central, através de leilões de moeda a taxas pré-determinadas, o que mantinha a cotação do dólar sob controle, e ajudava na ancoragem das expectativas de inflação. Este esquema funcionou até que a crise da Rússia, em agosto de 1998, que precipitou a saída de dólares dos países emergentes e, finalmente, o abandono da âncora cambial por parte do governo brasileiro. Eu explico em detalhes esse evento em meu livro  Descomplicando o Economês.

Com o fim do tabelamento do câmbio, o governo foi obrigado a substituir a âncora cambial. Armínio Fraga assumiu a presidência do BC e introduziu o chamado Sistema de Metas de Inflação. Tratava-se de uma metodologia que vinha sendo aplicada pelos bancos centrais de alguns países desenvolvidos (ex.: Austrália) com bastante sucesso. Consiste em determinar uma meta formal para a inflação, meta esta que deve ser perseguida pelo Banco Central, através da determinação da taxa básica de juros, que regula o preço da oferta de dinheiro na economia.

Este sistema tem como premissa o que chamamos em economia de “expectativas racionais”. Segundo essa teoria, os agentes econômicos agem de acordo com as suas expectativas para o futuro, de modo que essas expectativas acabam influenciando o estado presente da economia. Ao estabelecer uma meta para a inflação, e garantir que o BC agirá de maneira independente para atingir essa meta, o governo pretende que os agentes incorporem em suas ações hoje a inflação que todos esperam para o futuro. Trata-se de uma espécie de profecia autorrealizável. Claro que choques externos podem mudar a inflação no futuro, independentemente da expectativa dos agentes econômicos e da ação do BC. É para isso que existem as bandas de flutuação em torno da meta, para absorver esses choques. O que importa é que os agentes econômicos continuem a acreditar que o BC irá, no futuro, perseguir a meta de inflação.

Aqui chegamos ao ponto: como o BC toma conhecimento das expectativas dos agentes econômicos? O instrumento é o Relatório Focus, uma pesquisa junto a 170 entidades que se cadastraram junto ao BC para fornecer suas projeções macroeconômicas. Em seu site, o BC afirma que quaisquer instituições podem fornecer essas projeções, desde que contem com equipe especializada em projeções macroeconômicas. A lista dessas instituições encontra-se  aqui. A maior parte, compreensivelmente, é formada por instituições e consultorias financeiras, pois são as únicas em que projeções macroeconômicas fazem parte da matéria-prima de seu produto, que é o dinheiro. Assim, são essas instituições que contam com equipes dedicadas ao tema.

O incômodo do Ministério Público e de membros do governo vem do fato de que são esses mesmos agentes que ganham dinheiro com os movimentos das taxas de juros. Então, o BC, por conta do sistema de metas de inflação, estaria nas mãos dessas instituições, que poderiam manipular os seus prognósticos para forçar o BC a aumentar os juros ou, pelo menos, não os diminuir.

Este raciocínio não tem nem pé e nem cabeça por dois motivos.

O primeiro é a natureza da atividade das instituições financeiras. Tesourarias de bancos e gestores de recursos podem, em princípio, ganhar dinheiro com as taxas de juros subindo ou descendo. Através do mercado futuro, essas instituições podem ficar tomadas ou dadas em taxas de juros. Portanto, tanto faz a direção das taxas. Mas, além disso, como o mercado é estruturalmente dado em taxas de juros (ou seja, todos nós somos compradores de títulos públicos), a queda das taxas de juros é benéfica para o mercado como um todo. É fácil de entender porquê: se você compra um título prefixado a uma determinada taxa hoje, e a taxa de juros cai, você travou o seu rendimento com a taxa lá em cima, ganhando essa diferença. Por fim, taxas de juros baixas aumentam a atratividade de investimentos mais arriscados, e que podem ter taxas de serviço maiores. Taxas de juros muito altas, principalmente pagas por títulos públicos de baixo risco, simplesmente matam a indústria de gestão de investimentos, que forma grande parte dos respondentes do Relatório Focus. Assim, se houvesse algum interesse, seria na direção de taxas de juros mais baixas, não mais altas.

O segundo motivo pelo qual não faz sentido imaginar uma espécie de conluio para manter as taxas altas está justamente nessa palavra, “conluio”. O BC olha para a mediana das expectativas. Para que essa mediana suba de maneira relevante, é necessário que um número significativo de instituições se sente à mesa e combine entre si as informações que enviarão ao BC. O problema dessa hipótese está no caráter competitivo desse mercado. Os gestores de recursos fazem análises proprietárias justamente para se destacarem da concorrência. Forçar o BC a agir com base em informações forjadas simplesmente joga fora toda essa lógica concorrencial. O BC agiria de acordo com essa maioria mancomunada, e todos sairiam “ganhando”. O problema dessa hipótese é que não é isso o que se observa no mercado.

Aliás, falando em observar o que ocorre no mercado, vale a pena comparar as projeções do mercado para a inflação e a inflação propriamente dita. Se fosse verdade que o Relatório Focus superestima a inflação para forçar o BC a agir, seria de se esperar que a inflação projetada pelo Relatório Focus fosse consistentemente maior do que a inflação observada. No gráfico a seguir, temos justamente essa diferença: as barras verdes para cima indicam inflação esperada para o ano em janeiro daquele ano maior que a inflação observada no final daquele mesmo ano. Ao contrário, as barras vermelhas para baixo indicam inflação projetada em janeiro menor que a inflação observada no final do ano. Era de se esperar, se houvesse esse conluio, a prevalência de mais barras verdes, com o mercado “forçando a mão” na inflação.

IPCA: Expectativa vs. Realidade
Gráfico
IPCA: Expectativa vs. Realidade


Podemos observar que ocorre justamente o inverso: o Relatório Focus, na maior parte do tempo, subestima a inflação futura, e subestima por uma larga margem. Aliás, se os respondentes do Relatório Focus de fato forçassem as projeções da inflação para cima, o BC deveria manter as taxas de juros mais altas, levando a inflação observada a ser menor do que aquela projetada, o que, como vimos, não aconteceu na maior parte do tempo.

Enfim, a ação do Ministério Público junto ao TCU e a postura de alguns membros do governo contribuem para minar a credibilidade de um sistema que vem entregando inflação baixa ao longo dos últimos 25 anos. Seria uma pena jogar todo esse esforço da sociedade brasileira no lixo.

** Marcelo Guterman é engenheiro de produção pela Escola Politécnica da USP e Mestre em Economia e Finanças pelo Insper. Possui o certificado CFA – Chartered Financial Analyst. Ministrou vários cursos de finanças ao longo dos últimos 35 anos, incluindo Gestão de Investimentos no programa do MBA de Finanças do Insper. Atuou em várias multinacionais de administração de fundos de investimento nas últimas décadas, como gestor de recursos e especialista de investimentos. É autor dos livros “Finanças do Lar” e “Descomplicando o Economês".

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