Marcelo Guterman

30 anos de Plano Real: a URV

Como a URV conseguiu o que nenhum outro plano anterior alcançou

Foto: Pixabay
30 anos de Plano Real: a URV


Neste mês de março, celebramos os 30 anos da introdução da URV – Unidade de Referência de Valor, que seria o antecessor do Real, moeda que começaria a existir quatro meses depois.

Li algumas análises sobre o tema neste início de mês, e em várias delas os autores demonstraram uma certa surpresa a respeito da adoção rápida da URV pelo chamado “povão”. Tratava-se de um artifício técnico que pretendia hiperindexar a economia, de modo a que esta nova moeda indexada passasse a ser a nova moeda corrente.


Eu, particularmente, não me surpreendi. O brasileiro médio já estava acostumado a moedas indexadas, usadas como um artifício para se proteger contra o processo hiperinflacionário. Com uma inflação anual de 4 dígitos, é somente óbvio que o uso da moeda oficial para expressar preços (o que os economistas chamam de “unidade de conta”) era virtualmente impossível. Assim, vários preços já eram expressos através de índices, tais como a UFIR para impostos, a Unidade Taximétrica para tarifas de táxi, entre outros. Além do dólar, claro, moeda usada para transações de maior valor, como a compra de imóveis. Assim, a URV foi só mais uma moeda indexada, que vinha substituir o cruzeiro em todas as transações do dia a dia. A coisa foi natural.

A URV serviu, portanto, para que os agentes econômicos se acostumassem a expressar os preços em uma moeda imune à inflação do cruzeiro e, ao mesmo tempo, estabelecessem os preços de equilíbrio nesta nova moeda, sem o trauma de um congelamento de preços em determinado dia. Em uma economia hiperinflacionária, é somente óbvio que os preços expressos na moeda original embutem desequilíbrios que os agentes econômicos procuram compensar desesperadamente ao longo do tempo. Trata-se de uma corrida para recuperar o poder de compra perdido. Ao congelar os preços em determinado dia, os planos anteriores congelavam esses desequilíbrios, o que contribuía para o seu fim poucos meses depois. A URV permitiu que os agentes econômicos encontrassem esse equilíbrio na nova moeda.

Nesse contexto, eu tive uma experiência interessante. Na época em que houve a transição do cruzeiro para a URV, eu pagava um plano de saúde. Os pagamentos ocorriam no dia 30 de cada mês. Este detalhe é importante, porque, como a inflação era muito alta, o valor real do pagamento dependia do dia do mês em que o pagamento ocorria. Não lembro exatamente dos números, mas digamos que eu tivesse pagado Cr$ 100.000 no dia 30/03/1994. Este valor equivalia a 109,47 URVs pela tabela da época (cada URV valia R$ 913,50 no dia 30/03). No entanto, quando a empresa me enviou o boleto para o pagamento da mensalidade de abril (que ocorreria no dia 30/04), o valor era de 154,44 URVs. A empresa tinha transformado os R$ 100.000 pela URV do dia 01/03 (que valia R$ 647,50) e não pelo valor da URV de 30/03, que era o dia do pagamento. Perguntada, a empresa informou que havia convertido os valores das mensalidades de todos os clientes pela URV do dia 01/03, independentemente do dia do vencimento da fatura. A alegação era de que o dia do pagamento era apenas uma conveniência para o cliente, e não deveria influenciar o verdadeiro preço do serviço, pago igualmente por todos os clientes, que deveria ser transformado pela URV do dia 01/03. Assim, todos os clientes pagariam o mesmo valor em URV, independentemente do dia de vencimento de sua fatura.

Obviamente, não aceitei a argumentação, pois isto significaria um aumento de 41% no preço da minha mensalidade, equivalente à inflação de março de 1994. Cancelei meu contrato e migrei para outra operadora, que praticava preços mais razoáveis em URVs. Esse tipo de negociação ocorreu entre todos os agentes econômicos do país, não necessitando de uma ordem estatal para congelar os preços em determinado patamar.

A grande sacada da URV é que a mudança monetária não se limitou a um simples corte de zeros. A nova moeda não era simplesmente a antiga com menos zeros. Era uma moeda que estava “protegida” contra a inflação da antiga moeda, pois o seu valor era reajustado diariamente pela inflação do cruzeiro. A transformação da URV em Reais, em que a unidade de conta passou também a ser meio de troca, foi absolutamente natural. Depois de quatro meses de vigência, os agentes econômicos já tinham ajustado todos os seus preços em URVs, de modo que a transição para o Real ocorreu sem sobressaltos.

Havia um truque adicional, que ajudou na percepção de estabilidade da nova moeda: o fator de conversão da URV coincidia com o valor do dólar. Assim, na verdade, uma URV valia um dólar. Na história que contei acima, a URV do dia 30/03 valia R$ 913,50, e este era o valor de um dólar neste dia. Desse modo, quando, em 01/07/1994, a URV deu lugar ao Real, a nova moeda valia exatamente um dólar. Não que houvesse, como na Argentina e em outros países, um compromisso do governo de manter a paridade com o dólar. Mas tratava-se de um truque psicológico interessante, e que funcionou como âncora de credibilidade.

O Plano Real mudou a cara do Brasil. Falaremos mais sobre ele em julho, quando o Real completar 30 anos desde a sua introdução.

** Marcelo Guterman é engenheiro de produção pela Escola Politécnica da USP e Mestre em Economia e Finanças pelo Insper. Possui o certificado CFA – Chartered Financial Analyst. Ministrou vários cursos de finanças ao longo dos últimos 35 anos, incluindo Gestão de Investimentos no programa do MBA de Finanças do Insper. Atuou em várias multinacionais de administração de fundos de investimento nas últimas décadas, como gestor de recursos e especialista de investimentos. É autor dos livros “Finanças do Lar” e “Descomplicando o Economês".