O bitcoin está na crista da onda novamente. Depois de um longo e tenebroso inverno cripto, a mais famosa das criptomoedas vem se recuperando de maneira impressionante, e já ultrapassou a barreira dos US$ 50 mil por unidade. Agora, dizem, a próxima meta é a máxima histórica, de US$ 69 mil, atingida em novembro de 2021.
O mercado vive de símbolos, e não poderia ser diferente com o bitcoin. Ao atingir o preço de US$ 50 mil, o “valor de mercado” da criptomoeda ultrapassou US$ 1 trilhão. O Valor Econômico, em reportagem do dia 15/02, comparou este “valor de mercado” do bitcoin com o valor de mercado da Berkshire Hathaway, a empresa de Warren Buffett, de “apenas” US$ 856 bilhões, ou com o valor de mercado do Facebook, de US$ 1,17 trilhão. A questão é: faz sentido esse tipo de comparação?
Antes de responder a essa questão, vamos abordar uma outra semelhante, também comum em matérias de jornal: a comparação do valor de mercado de empresas com o PIB de países. Quando a Apple ultrapassou US$ 3 trilhões em valor de mercado, no início de 2022, o Estadão publicou reportagem comparando o valor de mercado da Apple com o PIB de alguns países, incluindo o Brasil, que, na época, tinha um PIB de US$ 1,4 trilhão. Ou seja, a Apple “valeria” mais do que o dobro de todo o PIB brasileiro. O problema desse tipo de comparação é que o PIB é uma medida de fluxo enquanto o valor de mercado é uma medida de tamanho de patrimônio. Isso significa que o PIB é a quantidade de riqueza produzida em um país a cada ano, enquanto o valor de mercado de uma empresa é a SOMA da quantidade de riqueza que uma empresa, supostamente, produzirá enquanto existir, segundo a avaliação dos investidores. A comparação adequada seria entre o lucro da Apple em um ano com o PIB produzido por um país em um ano. No caso, algo como US$ 100 bilhões, o que equivale ao PIB do Equador. Ou seja, toda a riqueza produzida pelo Equador em um ano é equivalente a toda a riqueza que a Apple produz em um ano.
Voltemos ao bitcoin. A reportagem do Valor compara o “valor de mercado” do bitcoin (a soma do valor de todos os bitcoins disponíveis no mercado) com o valor de mercado de empresas na bolsa. À primeira vista, essa comparação parece adequada, porque o valor de mercado de uma empresa é também a soma do valor de todas as ações daquela empresa disponíveis no mercado. Mas esse paralelo não sobrevive a uma análise mais profunda. Vejamos.
O que é o valor de mercado de uma empresa? Mais do que a simples multiplicação do número de ações pelo seu valor negociado em bolsa, o valor de mercado de uma empresa embute a expectativa dos agentes econômicos em relação à capacidade de aquela empresa gerar lucros no futuro. Em outras palavras, o valor de mercado é a soma de todos os lucros esperados daquela empresa até a perpetuidade, trazidos a valor presente por uma certa taxa de desconto. Claro que, no dia a dia da bolsa, os preços sobem e descem com base nas ofertas de compra e venda dos papeis, o que pode passar a impressão que os movimentos de preço se dão exclusivamente na base da demanda e oferta. Seria como o rabo abanando o cachorro, ou seja, o valor de uma empresa seria dado pelas negociações de seus papeis na bolsa, e não pela sua capacidade de gerar lucro. Na verdade, é justo o inverso: a demanda e a oferta de ações na bolsa é que é determinada pelos fundamentos das empresas. Pode haver movimentos especulativos de curto prazo, sem dúvida, mas estes não sobrevivem aos resultados apresentados pelas empresas em seus balanços. No final do dia, é o lucro que manda.
E no caso do bitcoin? Qual o fundamento de seu “valor de mercado”? Nenhum. O bitcoin, assim como qualquer outra criptomoeda, não tem um “fluxo de lucros futuros”. As criptomoedas não são empresas, são... moedas. Aliás, a sufixo “coin” não faz parte da palavra bitcoin por acidente. Nesse sentido, o “valor de mercado” do bitcoin deveria ser comparado com as bases monetárias dos países. Por exemplo, o M2 (soma de toda a moeda disponível em espécie e em investimentos de curto prazo, facilmente transformáveis em moeda) do Brasil em dezembro era de aproximadamente US$ 1,2 trilhão, mais ou menos o valor de todo o bitcoin disponível no mercado. Ou seja, ao preço atual, o bitcoin poderia substituir toda a base monetária brasileira.
Mas essa comparação também não é adequada. O valor da moeda de um país em relação às moedas de outros países é função de seus fundamentos macroeconômicos, enquanto o tamanho da base monetária é função do tamanho do PIB. A moeda é a expressão de uma realidade econômica, não uma entidade à parte. Países que tentam manipular a sua taxa de câmbio, ou que aumentam artificialmente a sua base monetária, mais cedo ou mais tarde acabam por deteriorar as suas próprias moedas. No final do dia, o que vale são os fundamentos.
E no caso do bitcoin? Quais são os seus “fundamentos”? Nenhum. O bitcoin não representa a economia de um país, com sua produção e suas políticas macroeconômicas. Assim, não há como avaliar se a “base monetária” do bitcoin está muito grande ou muito pequena, ou se a “moeda” está sub ou supervalorizada.
Bem, se o bitcoin não é uma empresa (e, portanto, não tem “valor de mercado”) e não é a base monetária de um país, o que é então? Não é nada. O bitcoin não é nada. O seu único “fundamento” é baseado em um puro jogo de oferta e demanda. Como a oferta é limitada por construção, e a demanda é supostamente crescente, o valor do bitcoin teoricamente só tem uma direção: para cima. Assim, as pessoas compram o bitcoin com a esperança de poder vendê-lo mais à frente por um preço maior. Só isso.
Nesse sentido, o bitcoin se parece com o ouro, ainda que, no caso, o metal precioso ainda sirva para fazer joias e medalhas. O bitcoin, nem isso. O único apelo do bitcoin para fora do jogo da demanda e oferta é a esperança de que, um dia, possa substituir as moedas fiduciárias. Aliás, uma parte da demanda se baseia nessa esperança. Este seria o “fundamento” do bitcoin, o de ser o único refúgio em um mundo em que a confiança nas moedas emitidas pelos bancos centrais dos países se desvanecesse. Trata-se, obviamente, de uma aposta de longuíssimo prazo e para lá de incerta. Em El Salvador, por exemplo, o dólar o bitcoin são aceitos legalmente, mas é o dólar que domina. Por enquanto, os salvadorenhos confiam mais no Tio Sam do que em um sistema que não tem dono e que foi vítima de várias fraudes nos últimos anos.
De qualquer modo, sem entrar no mérito sobre o futuro do bitcoin, conceitualmente não podemos comparar o “valor de mercado” do bitcoin com o valor de mercado de empresas. São coisas completamente diferentes.
** Marcelo Guterman é engenheiro de produção pela Escola Politécnica da USP e Mestre em Economia e Finanças pelo Insper. Possui o certificado CFA – Chartered Financial Analyst. Ministrou vários cursos de finanças ao longo dos últimos 35 anos, incluindo Gestão de Investimentos no programa do MBA de Finanças do Insper. Atuou em várias multinacionais de administração de fundos de investimento nas últimas décadas, como gestor de recursos e especialista de investimentos. É autor dos livros “Finanças do Lar” e “Descomplicando o Economês".