Marcelo Guterman

A Enel e o velho debate sobre privatizações no Brasil

Eventos únicos não nos dizem nada sobre a qualidade dos serviços das empresas

Foto: Divulgação
A Enel e o velho debate sobre privatizações no Brasil


Tomou conta do  Brasil e, principalmente, de São Paulo, o debate sobre a privatização de serviços básicos prestados à população, depois do  apagão de vários dias que se seguiu a uma forte tempestade na cidade. O setor de distribuição de energia elétrica foi, em grande parte, privatizado na década de 90, o que inclui a concessionária que serve a cidade de São Paulo, que foi privatizada em 1998. 20 anos depois, em 2018, a Enel, de capital italiano, assumiu o controle da Eletropaulo, tornando-se a maior empresa de distribuição de energia elétrica do país.


Com milhões de consumidores sem luz durante várias horas e, até mesmo, dias, a  Enel ficou no fogo cruzado do debate sobre os supostos malefícios da privatização. A principal acusação é de que a empresa, por ser privada, estaria privilegiando os lucros dos acionistas às custas do serviço prestado à população. Em princípio, este não deveria ser um dilema. Afinal, a maximização do lucro no tempo requer a retenção dos clientes, e isso só é possível se o atendimento for aceitável. No entanto, no caso de uma concessão pública, em que a empresa é, por definição, monopolista, a coisa complica: em princípio, o cliente é cativo, independentemente da qualidade do serviço prestado. Assim, a concessionária estaria livre para focar exclusivamente em sua rentabilidade, sem se preocupar com o nível do serviço. É aqui que entra o papel da agência reguladora, a ANEEL.

A ANEEL determina níveis mínimos de qualidade de serviços, sob pena de multas e, até, no limite, de cassação da concessão. Esse nível de serviço é medido basicamente através de dois indicadores: a DEC (Duração Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora) e a FEC (Frequência Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora). Como os próprios nomes dizem, a DEC mede a duração das interrupções de fornecimento, enquanto a FEC mede a frequência dessas interrupções. Essas estatísticas são públicas, e podem ser encontradas no site da ANEEL .

Anualmente, a ANEEL elabora um ranking que combina esses dois indicadores em um só, chamado de DGC – Desempenho Global de Continuidade. Podemos ver abaixo o ranking de 2022, que considera apenas as distribuidoras de grande porte:

Foto: ANEEL
O ranking de 2022

Destaquei algumas empresas que nos interessam mais de perto. Em primeiro lugar, a própria Enel SP, que está no centro do furacão, e suas congêneres do Ceará e Rio de Janeiro, em amarelo. Em seguida, em vermelho, Celesc e Cemig, as únicas empresas ainda estatais desta lista, além da CEEE e da Copel, que foram privatizadas apenas recentemente (em 2021 e 2023, respectivamente), de modo que ainda não refletem plenamente os efeitos da privatização. E, finalmente, em azul, a Equatorial de Goiás, sobre a qual comentaremos mais à frente.

Esta tabela é útil porque reúne, em um único índice, a qualidade do serviço das concessionárias. A tentação é forte de julgar o serviço em função de eventos particulares. Quando não somos bem atendidos por uma empresa, tendemos a considerá-la de baixa qualidade. No entanto, a nossa experiência pessoal não é o melhor guia. Sites como o "Reclame Aqui" ou o próprio Google dão uma visão consolidada da qualidade percebida pelos consumidores. Nenhuma empresa é perfeita, sempre vai acontecer de pisar na bola. A questão é a frequência dessas pisadas de bola. Medições com grandes grupos populacionais sempre são mais confiáveis do que experiências pessoais. Por isso, essa tabela, que traz estatísticas consolidadas da eficiência das concessionárias ao longo de todo um ano, é muito mais útil do que o barulho ensurdecedor das redes após um único evento atípico.

Observe, em primeiro lugar, que as empresas estatais, no geral, estão na parte de baixo da tabela, na zona de rebaixamento ou próximo dela. Ou seja, quando consideramos dados agregados de um ano inteiro, as estatais claramente não são exemplos de boa performance, quando comparadas com as empresas privadas.

Em segundo lugar, o grupo Enel também não está bem na foto. Suas três empresas encontram-se na parte de baixo da tabela, ainda que com índices aceitáveis, de acordo com os critérios da ANEEL. A Enel SP, apesar de todo o barulho, apresenta índices um pouco melhores do que as estatais.

Por fim, a Equatorial Goiás, que se encontra na zona de rebaixamento. Seu índice é um dos três piores da lista e, segundo a ANEEL, está fora do aceitável. A  coluna do Estadão de 07/11 traz uma declaração do governador de Goiás, Ronaldo Caiado, a respeito da Enel: “Enel é caso de polícia. Tem que ser jogo pesado. Em Goiás, consegui expulsá-los”. Aqui, vale a pena desenvolver um pouco essa história.

A Enel assumiu a empresa estatal Celg (Centrais Elétricas de Goiás) em 2017, depois de um longo processo de privatização. O gráfico a seguir mostra a evolução da DEC e da FEC da Celg desde 2002 e da Enel-GO a partir de 2017. Há uma marca em 2017, ano da privatização.

Foto: ANEEL
Evolução da DEC e da FEC da Celg desde 2002 e da Enel-GO a partir de 2017

Observe que a FEC recua de 1,92 em 2017 para 0,95 em 2023, ao passo que a DEC recua de 3,78 em 2017 para 2,13 em 2023. Ou seja, a frequência e a duração das interrupções de energia foram reduzidas, respectivamente, em 51% e 44% desde a privatização, e estão nas mínimas históricas. Claro, ainda estão em níveis muito altos, razão pela qual a empresa (adquirida pela Equatorial neste ano), encontra-se entre as piores do país. Mas este parece ser um problema herdado da época em que a empresa era estatal, e a Enel vinha trabalhando para melhorar os índices, com sucesso, como os números demostram. Ou seja, o governador Caiado tem razão em reclamar do nível de serviço da Enel em Goiás, mas a culpa deveria ser colocada na privatização tardia da empresa.

Enfim, é possível que a Enel pudesse prestar um serviço melhor, a tabela da ANEEL mostra isso. Mas daí a concluir que a privatização foi a responsável pela má performance da empresa durante a emergência em São Paulo vai uma distância amazônica. Infeliz ou felizmente, não temos o contrafactual. Ou seja, como uma Eletropaulo estatal reagiria diante da mesma emergência. Desconfio que não seria um espetáculo bonito de se ver.

** Marcelo Guterman é engenheiro de produção pela Escola Politécnica da USP e Mestre em Economia e Finanças pelo Insper. Possui o certificado CFA – Chartered Financial Analyst. Ministrou vários cursos de finanças ao longo dos últimos 35 anos, incluindo Gestão de Investimentos no programa do MBA de Finanças do Insper. Atuou em várias multinacionais de administração de fundos de investimento nas últimas décadas, como gestor de recursos e especialista de investimentos. É autor dos livros “Finanças do Lar” e “Descomplicando o Economês".