Com 10% passando fome, Brasil é um dos países com mais bilionários

País está entre os 20 primeiros com maior número de bilionários per capita

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil - 09.12.2019
Ao lado do bairro do Morumbi, comunidade de Paraisópolis se tornou símbolo brasileiro da desigualdade social

O Brasil é um dos 20 países com maior número de bilionários per capita do mundo, de acordo com levantamento do Insider Monkey baseado em dados da Forbes. Em 18º lugar no ranking, o país tem um total de 51 pessoas com mais de US$ 1 bilhão em patrimônio.

Além da alta concentração de bilionários, o Brasil é o 14º país do mundo com maior número de pessoas com patrimônio líquido ultra-alto (mais de US$ 50 milhões), segundo o Global Wealth Report 2023, relatório anual do Credit Suisse e do UBS. Além disso, o levantamento aponta que, no ano passado, enquanto o mundo perdeu milionários, o Brasil ganhou.

No final de 2022, 59,4 milhões de pessoas tinham mais de US$ 1 milhão em todo o mundo, número 3,5 milhões menor do que no final de 2021. Por outro lado, o montante brasileiro foi de 413 mil milionários, 120 mil a mais do que em 2021 - um salto de 41%. Segundo projeções do relatório, o número deve crescer ainda mais nos próximos anos, com o Brasil atingindo 788 mil milionários em 2027. 

Esses dados não revelam apenas que o Brasil tem muitas pessoas ricas, mas também que ele é um país muito desigual. Em 2022, o 1% de brasileiros mais ricos detinha 48,4% de toda a riqueza do país - em 2010, a taxa era de 40,2%. "A desigualdade de riqueza é alta na América Latina, especialmente no Brasil, onde o coeficiente de Gini de riqueza era de 88,4 em 2022, acima de 84,5 em 2000", aponta o relatório. Quanto mais próximo de 100 na escala Gini, mais desigual um país é.

No mesmo período em que o número de milionários cresceu no Brasil, o país alcançou a taxa de um terço da população em insegurança alimentar , segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU). De acordo com as informações mais recentes do órgão, 21,1 milhões de brasileiros passam fome, o equivalente a quase 10% da população.

"O Brasil sempre aparece nas listas como um dos países campeões de desigualdade, e uma das métricas para mensurar essa desigualdade é justamente esse aspecto da concentração da riqueza", aponta Jefferson Nascimento, doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenador de Justiça Social e Econômica da Oxfam Brasil.

Incentivo à riqueza

Jefferson avalia que o principal aspecto que incentiva a concentração de renda no Brasil são os incentivos fiscais dados às pessoas mais ricas. O pesquisador destaca a isenção de lucros e dividendos no Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), o que beneficia apenas os mais ricos.

Em 2021, os rendimentos deste tipo declarados pelos brasileiros atingiram o recorde de R$ 555,7 bilhões, valor que não é tributado. 74% deste montante está concentrado nas mãos do 1% mais rico.

Victor Bridi, pesquisador do Laboratório de Equidade Fiscal e do Centro de Estudos sobre Desigualdade e Desenvolvimento da Universidade Federal Fluminense (UFF), aponta, ainda, outras anomalias tributárias que beneficiam os mais abastados no Brasil. "Nosso sistema tributário, que seria uma das principais ferramentas para reduzir a desigualdade, pouco tributa as altas rendas e o patrimônio, o que favorece a concentração de recursos na mão de poucos", aponta.

No Brasil, a alíquota mais alta paga no Imposto de Renda é de 27,5%, taxa considerada baixa na comparação internacional, afirma o pesquisador. Além disso, o IRPF tem apenas quatro faixas, o que faz com que pessoas com rendas muito diferentes paguem imposto sobre a mesma alíquota.

"Também há uma miríade de subsídios e regimes especiais que protegem determinados grupos econômicos que poderiam arcar com mais custos tributários, como o agronegócio", acrescenta Victor.

Políticas públicas

Os pesquisadores apontam que a principal vantagem de  aumentar a taxação sobre os mais ricos é permitir que o Estado consiga arrecadar o suficiente para investir em políticas públicas que possam efetivamente reduzir a desigualdade.

"O Estado trabalha para que haja essa concentração, tirando eventuais formas da sociedade de alguma maneira cobrar dessas pessoas muito ricas recursos para financiar políticas sociais que poderiam reduzir essas desigualdades", comenta Jefferson.

Além de embasamento técnico, esse tipo de medida tem apoio popular. De acordo com o relatório Nós e as Desigualdades, da Oxfam, 85% dos brasileiros concordam com o aumento dos impostos de pessoas muito ricas para financiar políticas sociais, enquanto 94% concordam que o imposto pago deve beneficiar os mais pobres.

Dentre as medidas para reduzir a desigualdade, Jefferson cita a valorização do salário mínimo. O pesquisador defende que medidas como programas de transferência de renda são essenciais para melhorar o cenário, mas não conseguem, sozinhas, garantir mudanças duradouras. "Aquilo que ancora de verdade o combate à pobreza e à fome é essa garantia de emprego e de renda", afirma.

Neste ano, o  governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou uma lei que garante o aumento anual do salário mínimo acima da inflação, fazendo com que o valor cresça o equivalente ao crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) de dois anos antes.

Além dessa medida, Victor cita como essenciais os investimentos em saúde e educação. "Nossos estudos mostram como a provisão de serviços públicos, como saúde e educação, tem efeitos significativos sobre a redução da desigualdade, garantindo acessos. Obviamente, mais recursos destinados a essas rubricas - e não só, mas também garantindo um gasto eficiente e que aumente a qualidade - tendem a ter efeitos positivos tanto no curto prazo - ao massificar o acesso de parcelas mais pobres da população - quanto no longo prazo - ao garantir oportunidades, mobilidade social e cidadania".

América Latina

Olhando para a América Latina, o Brasil não é um caso isolado de desigualdade, já que o cenário é muito similar em toda a região. De acordo com o relatório do Credit Suisse e do UBS, toda a região ganhou milionários no último ano, enquanto o mundo perdeu.

Esse caminho da América Latina na contramão do mundo foi ajudado pela valorização cambial das moedas da região em relação ao dólar, aponta o relatório. Mas, embora a riqueza tenha crescido, a desigualdade não foi reduzida porque, assim como no Brasil, os países latinoamericanos também têm "sistemas tributários de alguma maneira permissivos, com brechas para que os super ricos consigam evadir de pagar impostos", analisa Jefferson.

"A desigualdade no Brasil é de fato muito alta e tem raízes históricas, assim como em outros países latinos, e até hoje compartilhamos características desse passado colonial em comum: elevada informalidade, economias majoritariamente agrário-exportadoras, concentração patrimonial, desigualdades étnico raciais, dentre outras mazelas. A concentração ocorrida no passado até hoje não foi bem enquadrada por meio de políticas públicas", explica Victor.

Esse contexto regional de desigualdade é ainda mais aprofundado em momentos de crise, como a recente causada pela pandemia de Covid-19. Nesses momentos, os mais ricos conseguem diversificar as formas com que ganham dinheiro, enquanto os mais pobres perdem renda rapidamente.

Para os próximos anos, Victor acredita ser difícil reverter o aumento da desigualdade social deixado como herança pela pandemia. "A tendência é que a desigualdade não arrefeça no futuro próximo, uma vez que os alunos pobres que estudam em escolas públicas foram severamente afetados pela pandemia de Covid: ficaram mais tempo afastados das escolas e com poucos recursos para estudarem à distância. Assim, com o desempenho destes alunos afetado, no longo prazo estarão menos propensos a conseguir postos de trabalho mais qualificados. É um impacto que, infelizmente, deve ser observado e medido", avalia.