As campanhas presidenciais deste ano voltaram seu foco a um grupo específico: pessoas endividadas. Se em 2018 a promessa de "limpar o nome" de milhões de pessoas foi bandeira eleitoral do candidato do PDT, Ciro Gomes , neste ano Luiz Inácio da Silva (PT) também promete renegociações e incluiu até pessoas com boletos em atraso. Por outro lado, o presidente Jair Bolsonaro (PL) aposta na criação de empréstimos para os beneficiários do Auxílio Brasil, o que gera críticas de especialistas e temores dos bancos de que a inadimplência no país aumente ainda mais.
O objetivo de alcançar este público não é em vão. De acordo com o indicador da Serasa Experian, 67,8 milhões de brasileiros estavam inadimplentes até julho deste ano – esse número diz respeito às dívidas vencidas sem pagamento informadas pelos credores. No mesmo mês de 2018, quando Ciro apresentou sua proposta, 61 milhões estavam com dívidas. O total devido atualmente por essas pessoas soma R$ 287,7 bilhões. Esses são os maiores patamares da série histórica.
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Quem tem dívidas em atraso ou o nome negativado encara uma série de limitações, porque deixa de poder usar o crédito como complemento de renda em tempos de inflação, com o custo de vida mais alto, e pode ter de driblar a situação abrindo contas em bancos digitais diferentes para poder fazer um PIX, por exemplo.
A inadimplência é uma preocupação para economistas, porque é um sintoma claro de outros problemas ainda maiores, como o desemprego e a diminuição da renda. Nesse caso, nem mesmo o aumento do Auxílio Brasil, que paga mais para um número maior de beneficiários, traz algum tipo de refresco para quem não consegue mais arcar com as despesas básicas.
Miguel Ribeiro, diretor executivo da Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac), acredita que a tendência é de que a inadimplência no Brasil cresça ainda mais no curto prazo, devido ao ambiente de risco com desemprego alto, inflação e juros altos e país crescendo pouco.
"Esse quadro de inadimplência atinge pessoas e empresas, e os candidatos podem prometer mudanças envolvendo bancos públicos, mas não sobre os privados. Desde a pandemia os bancos estão muito flexíveis e o quadro é grave. A questão é como o governo vai fazer isso (renegociar dívidas) com o quadro fiscal ruim. Em situação fiscal boa, ele poderia bancar parte disso e renegociar essas dívidas", afirma Ribeiro.
Para Lauro Gonzalez, coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão Financeira da FGV, ter políticas para este grupo é positivo. Mas para tirar essas pessoas da inadimplência, é preciso adotar um modelo focalizado, da análise e concessão do crédito até as formas de garantia e o pagamento. Entretanto, em sua visão, “o diabo está nos detalhes”:
"É possível fazer (um programa de renegociação de dívidas), mas certamente não é possível para todo universo de endividados, a não ser que você assuma um prejuízo, e aí você terá de separar aqueles que não vão pagar daqueles que seriam candidatos à renegociação."
O especialista defende a adoção de um projeto piloto, que aumente gradativamente. A solução é paliativa, porque não ataca o problema estrutural, que envolve o crescimento pífio do país, mercado de trabalho estagnado e marcado pela precarização e informalidade, onde a complementação de renda é o crédito.
PT foca em mulheres
Luiz Inácio Lula da Silva (PT) aproveitou a entrevista no Jornal Nacional para acenar para esse público, falando diretamente às mulheres.
"Uma coisa importante: nós temos quase que 70% das famílias brasileiras endividadas, e a grande maioria delas é mulher: 22% endividadas porque não podem pagar a conta d'água, a conta de luz, a conta do gás", afirmou o petista.
Em plano de governo, o petista sugere a renegociação das dívidas por meio dos bancos públicos, om possibilidade de incentivos a instituições privadas e mudanças regulatórias para reduzir o custo do crédito.
Foi a primeira vez que Lula falou publicamente sobre a proposta, que é uma ideia do PDT. Na sabatina do jornal O GLOBO, Valor Econômico e rádio CBN, o pedetista comentou sobre Lula ter se apropriado da ideia e disse que ficou feliz com a "cópia".
"É uma cópia que eu gosto que se faça. Minhas ideias não são minhas, estou recolhendo do povo. Estou recolhendo entre as experiências internacionais que eu estudo, entre as melhores literaturas disponíveis. Se vocês espremerem a entrevista do Lula ontem, a única proposta que saiu foi essa. Fico feliz que é uma proposta que eu trouxe e foi levada ao deboche porque enfrenta o interesse de um novo escravismo que os bancos impuseram aos brasileiros", disse.
Ciro reeditou a proposta e diz que vai reduzir em um terço o valor médio das dívidas das famílias com apoio dos bancos públicos. O refinanciamento teria carência de três anos e poderia ser pago em até 36 meses. Além disso, propôs a adoção de uma lei antiganância, que na prática criaria um teto para os juros.
Enquanto Lula e Ciro, candidatos do polo da esquerda, prometem aliviar as dívidas dos brasileiros, Bolsonaro segue em direção oposta. Não há no programa de propostas do chefe do Planalto nenhuma menção a medidas que possam atenuar a situação dos endividados.
Por outro lado, ele é acusado de facilitar o superendividamento ao emplacar a mudança na lei que permite que beneficiários do Auxílio Brasil, programa de transferência de renda para famílias pobres e extremamente pobres, façam empréstimos consignados. Diversos bancos, inclusive os maiores do país – Bradesco, Itaú e Santander, além do estatal Banco do Brasil, não indicaram, até o momento, que participarão desta modalidade.
Além disso, os bancos médios e pequenos que atuarão devem ter taxas de juros elevadas, em alguns casos o dobro do pago por servidores e aposentados em consignado. Isso porque há muita incerteza sobre este tipo de empréstimo: mesmo retido na fonte antes das famílias receberem 400 (o empréstimo não levará em conta o valor de R$ 600, pois ele não está garantido no orçamento de 2023), beneficiários podem ser excluídos do programa, aumentar os riscos para os bancos, já que de acordo com a regulamentação não será o governo responsável pela dívida nestes casos.
Na avaliação de Miguel Ribeiro, da Anefac, essa modalidade é uma temeridade:
"Estamos falando de pessoas vulneráveis, sem conhecimento técnico, e de um benefício que não vai ter continuidade, e é usado para subsistência. Diferentemente do empréstimo consignado para aposentados e pensionistas, que têm juros limitados, esse não tem."
Os principais bancos privados do país decidiram não oferecer essa modalidade de crédito, mas o governo afirma que já há 17 instituições financeiras aptas a realizar a operação. Será possível comprometer até 40% do valor do Auxílio Brasil, considerando o piso de R$ 400, e não há teto de juros.
Esse modelo, na visão de Lauro Gonzalez, é mais danoso para a pessoa vulnerável, que não tem nem certeza sobre a continuidade do recebimento do benefício e, portanto, não tem como garantir o pagamento.
"Para uma parcela significativa desse público, não faz sentido oferecer esse crédito. Se o crédito for usado como fundamento de renda, sobretudo esse crédito de baixa qualidade e caro, ele é um vetor de sobre-endividamento", diz.
A senadora Simone Tebet (MDB-MS), por sua vez, também não apresenta propostas para os endividados nem menciona nenhuma ação do tipo em seus atos de campanha.
Endividamento recorde
Quando a proposta de tirar o nome dos brasileiros do SPC surgiu, em 2018, o cenário de endividamento era um pouco mais brando do que atualmente. A Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), da Confederação Nacional do Comércio (CNC), apontou que, em julho, 78% das famílias relataram ter alguma conta atrasada. Esse é o maior patamar da série histórica, iniciada em 2010.
“O público feminino é atualmente o mais endividado e, embora o endividamento venha desacelerando entre as mulheres nos últimos meses, no ano, o incremento na proporção de endividados foi maior entre as mulheres”, diz a pesquisa, que mostra que 80,6% das mulheres têm alguma dívida. A Peic também investiga o perfil das famílias endividadas. A proporção é maior entre as que recebem até dez salários mínimos – 78,8% relatam terem dívidas.
Além do aumento do endividamento da população, a renda do brasileiro está encolhendo. Como o GLOBO já mostrou, 38% dos trabalhadores, formais e informais, recebem até um salário mínimo – atualmente em R$ 1,2 mil.