A quantidade de processos parados no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), o Tribunal da Receita, superou a marca de R$ 1 trilhão. O aumento do estoque de casos é resultado de um teto imposto pelo órgão, que impediu o julgamento de grandes causas durante a pandemia, e pela greve dos auditores da Receita Federal.
Trata-se do maior número de processos à espera de julgamento desde 2011, início da série. O número, segundo especialistas, expõe a complexidade do sistema tributário brasileiro. A demora na resolução desses casos gera incerteza para as companhias e aumento de custos processuais para empresas e governo.
O Carf julga casos em que o contribuinte não concorda com autuações tributárias. O órgão reúne desde discussões sobre Imposto de Renda da Pessoa Física até casos bilionários de multinacionais, de modo a evitar que questões tributárias sejam levadas diretamente para a Justiça.
A média histórica de julgamentos parados no Carf girava em torno de R$ 600 bilhões. Com a pandemia e a paralisação dos auditores, o número cresceu mês a mês e agora soma R$ 1,053 trilhão.
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Roberto Quiroga, sócio-diretor do escritório Mattos Filho, lembra que os processos parados no Carf engrossam a montanha do contencioso tributário brasileiro. "O número mostra que alguma coisa está errada, pois a litigiosidade está muito alta. Ou está tendo erro da interpretação da lei por parte dos contribuintes, ou exagero da autoridade tributária. Tudo isso decorre da interpretação da lei brasileira, do sistema tributário brasileiro, que é realmente muito confuso", avalia.
Com a pandemia, o Carf decidiu impor um teto de R$ 36 milhões para os casos que foram levados a julgamentos, que ocorriam de maneira virtual. Esse limite caiu em abril. Isso ocorreu na mesma época em que começou a mobilização dos auditores fiscais pela regulamentação do bônus de eficiência, que tem levado ao adiamento das sessões de julgamento do conselho por falta de quórum.
O Carf é composto por 180 conselheiros (90 representantes dos contribuintes e 90 da Receita). Sem quórum, apenas uma turma vem tendo sessões regulares.
Segundo dados divulgados pelo Carf, tramitam no tribunal administrativo 160 processos com valor de R$ 1 bilhão ou mais. Eles somavam, porém, R$ 444 bilhões. Ou seja, 42% do valor do estoque do Carf dizem respeito a menos de duas centenas de casos.
Entre grandes processos em discussão no Carf, estão processos relacionados a empresas como Itaú, Ambev e Petrobras. O banco enfrenta processos de cerca de R$ 60 bilhões. Um deles, por exemplo, refere-se à fusão com o Unibanco, parado desde 2018 e que já chega a R$ 30 bilhões, considerando a atualização monetária. Procurado, o banco não se manifestou.
A Ambev tem casos volumosos no Carf, somando cerca de R$ 50 bilhões. A empresa afirma que os valores indicados são fruto de discussões em que discorda da cobrança e são temas comuns a grandes empresas brasileiras. "Considerando o porte da empresa e, ainda, por sermos uma das maiores pagadoras de impostos do país, é natural que, na soma, o valor em discussão seja expressivo", afirma.
A Petrobras, por sua vez, tem R$ 30 bilhões pendentes de julgamento. A estatal diz que os processos se referem a divergências de interpretação da norma tributária entre contribuinte e autoridade fiscal federal e não representam dívida em desfavor da companhia.
'Soluções inovadoras'
Em nota, o Carf disse que tem controle de todos os seus processos de trabalho, com mensuração quantitativa e qualitativa dos resultados. "O Carf estuda soluções inovadoras para o enfrentamento da situação com foco na qualidade e celeridade de suas decisões", afirma. Segundo o órgão, 25% dos processos já se encontram prontos para julgamento.
Apesar do montante elevado de processos, Leandro Cabral, sócio da área tributária do Velloza Advogados, afirma ser mais positivo para os contribuintes e para o Estado ter as discussões tributárias na via extrajudicial. Na Justiça, uma questão tributária leva de sete a dez anos — no Carf, são 3,5 anos, em média.
"O contencioso tributário brasileiro se destaca no plano mundial", afirma Cabral. "Quem chega ao Carf é quem entende que não deve mesmo e vai investir uma série de ferramentas para reverter a cobrança tributária, podendo perder ou ganhar. E o processo judicial é mais oneroso para o Estado e para o contribuinte".
Segundo conselheiros do Carf, as maiores autuações em discussão estão relacionadas, na maioria, a IRPJ e CSLL. São discussões sobre planejamentos tributários apontados como abusivos pela Receita, com a aplicação pelo Fisco da multa qualificada, de 150% do tributo devido. A penalidade ajuda a elevar o valor dos processos.
Casos envolvendo pessoas físicas costumam ter valores menores. O conselho analisa, por exemplo, processos de contribuintes que caíram na malha fina e estão discutindo o montante a pagar de Imposto de Renda da Pessoa Física.
"O estoque do Carf é grande porque o nosso sistema tributário é confuso e controverso. Tem discussão sobre todos os tipos de tributos. Talvez esse estoque de R$ 1 trilhão revele uma consequência da bagunça que é o sistema tributário brasileiro", afirma Luiz Romano, do Pinheiro Neto advogados.
Sem reforma, sistema segue complexo e caro
Apontada por especialistas como fundamental para reduzir custos, simplificar, facilitar e melhorar a cobrança de impostos, a reforma tributária é tentada por diferentes governos há décadas, mas não há avanços concretos no modelo brasileiro.
Essa situação leva a distorções, aumento de gastos para empresas e gera uma montanha de disputas com Fiscos de União, estados e municípios — disputas que também param na Justiça.
O dado mais recente do Banco Mundial, de 2021, aponta que as empresas brasileiras gastam entre 1.483 e 1.501 horas por ano para preparar, declarar e pagar impostos, mais do que em qualquer outro país do mundo. A Receita Federal contesta esses dados e diz serem necessárias 474 horas para cumprir o pagamento de tributos no país todos os anos. Mesmo se for considerado o dado da Receita, o país estaria na 151º colocação neste ponto no relatório do Banco Mundial.
A gestão Jair Bolsonaro tentou emplacar uma reforma fatiada, inicialmente com dois projetos de lei. Nenhuma das propostas, porém, foi aprovada pelo Congresso, em meio a uma disputa sobre o tema. Tanto a Câmara dos Deputados como o Senado Federal defenderam projetos próprios de reforma, com diferentes nuances.
A parte principal das reformas é a unificação dos impostos. Mas entrar em um acordo sobre como ela será feita é tão complexo quanto o próprio sistema tributário brasileiro. O Brasil tem, pelo menos, cinco tributos embutidos nos preços de bens e serviços. Só o ICMS, estadual, tem 27 formatos diferentes, um para cada estado.
A classificação é outro problema recorrente. É perfume ou água de colônia? A alíquota da fórmula concentrada é 42%. Já a da fragrância mais leve, de 12%.
Na semana passada, por exemplo, o Carf discutiu se a instalação de sistemas de ar-condicionado central é obra de construção civil ou serviço — uma diferença e tanto em termos de impostos. Um serviço está sujeito ao recolhimento de 32% das suas receitas para fins da base de cálculo do IRPJ. Já em uma obra de construção civil, esse percentual cai para 8%.
Esse nó de tantas informações e cobranças dificulta a vida e o caixa das empresas, além de facilitar erros. Segundo a Endeavor, 86% das empresas brasileiras apresentam algum tipo de irregularidade no pagamento de seus tributos. Essas lacunas muitas vezes são por desconhecimento das muitas regras. Mesmo assim, podem gerar multas e despesas altas.