Com 66,6 milhões de inadimplentes no país, renegociar dívidas virou prioridade não só para os devedores como para as empresas. O brasileiro busca em primeiro lugar quitar as contas básicas de consumo, como água, luz e gás. Do lado das empresas, a figura do cobrador por telefone deu lugar a fintechs e plataformas de renegociação com diversos canais de contato para facilitar a tarefa de quem tenta esticar o orçamento para cobrir as despesas. Há casos de parcelamento em até 60 prestações.
A vontade de colocar as contas em ordem está nos números. Em 2018, a Serasa criou o feirão Limpa Nome. No ano seguinte, 5 milhões procuraram a empresa para renegociar pendências. Somente no primeiro semestre deste ano, 10 milhões buscaram uma saída para intermediar acordos.
Com inflação e juros de dois dígitos pressionando o orçamento do consumidor, as empresas têm recebido o esforço de braços abertos: é possível renegociar em portais on-line, WhatsApp ou por fintechs . Descontos e parcelamentos a perder de vista entraram no cardápio.
"É tendência que vai crescer, especialmente em tempos de crise. As fintechs têm melhor performance para fazer cobranças, são diferentes dos insistentes call centers. Conseguem identificar falhas nos sistemas de contas a receber das empresas e oferecem controle mais eficiente dos pagamentos", avalia Bruno Diniz, presidente da consultoria de inovação Spiralem, focada no setor financeiro.
Para Luiz Rabi, economista da Serasa Experian, com a melhora do nível de emprego e a liberação de saque do FGTS, há um movimento em curso para regularizar as contas:
"As pessoas estão se livrando da inadimplência ou pelo menos de algumas de suas dívidas. Mas a inflação precisa cair para a inadimplência diminuir. E os juros, que seguem altos, pesam contra, porque encarecem as dívidas."
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Flávio Feitosa ficou 13 meses sem pagar a conta de luz depois de ter perdido o emprego. Ele ganhava R$ 4 mil. Em novembro, conseguiu nova vaga como consultor de atendimento, mas voltou ao mercado de trabalho com salário de R$ 2 mil. Para quitar a dívida, o jeito foi renegociar e parcelar:
"O valor total estava entre R$ 3.500 e R$ 4.500, mas consegui negociar para quitar em 20 parcelas de R$ 150. É difícil, hoje tudo está mais caro que no começo da pandemia, né? Antes a gente conseguia fazer uma viagem, mesmo curta, para passear com a família. Hoje, a gente dá prioridade a contas de casa, alimentação e educação dos filhos."
Segundo a Serasa, o valor médio por pessoa de dívida chega a R$ 4.179,51. Bancos e cartões representam 28,18% dos débitos, mas as contas de consumo aparecem logo na sequência, com 22,74%.
Cobrança via plataforma digital
Com tanta dívida em atraso, as empresas deixam a tarefa de cobrar para as plataformas digitais, que, em muitos casos oferecem condições melhores de parcelamento ou juros. A Acordo Certo, por exemplo, oferece não só prazo elástico de pagamento como cursos de educação financeira.
"O consumidor entra na plataforma, enxerga as dívidas, vê as condições oferecidas pelas empresas e resolve", diz Bruna Allemann, educadora financeira da Acordo Certo.
Segundo ela, as mais de 30 empresas que fazem renegociação pela plataforma, como Riachuelo, Renner, Claro, Havan, Bradesco e Vivo, entre outras, buscam oferecer condições que caibam no bolso. Uma delas aceitou parcelar a dívida em até 60 vezes. A cada renegociação fechada, a Acordo Certo recebe comissão das empresas. No fim de 2020, a empresa de crédito Boa Vista comprou a plataforma por R$ 37 milhões.
O segmento atrai a atenção de investidores, e existem ao menos 35 fintechs no país focadas na renegociação de dívidas. A Receiv, fintech especializada em contas a receber, faz parte do Cubo Itaú, maior centro de empreendedorismo tecnológico da América Latina.
Ela ajuda na gestão financeira de empresas como Totvs, Unimed, Aliansce Sonae e Ipiranga. Já recebeu duas rodadas de investimento. A receita vem da assinatura que as empresas fazem de um software de gestão, que ajuda a reduzir em até 30% a inadimplência.
"Há casos de ineficiência nos canais de comunicação com o cliente, especialmente em empresas não financeiras. Condicionamos o tomador do crédito a manter a pontualidade do pagamento", diz Pedro Bono, um dos fundadores.
Novas soluções
A própria concessionária pode ver uma oportunidade na gestão de contas. Foi assim que nasceu a Voltz, fintech criada pela Energisa, distribuidora de energia. Com a conta digital, facilitou a vida de quem tinha dificuldade de pagar em razão do deslocamento, pois dos 862 municípios atendidos pela empresa, só 406 tinham agência bancária.
Passou a oferecer crédito para que clientes em atraso colocassem a fatura em dia. Neste trimestre, ao menos 15 mil vão regularizar sua situação. Para pagar, vale WhatsApp, call center, agência física, Pix ou parcelamento em até 24 vezes, com juros.
Distribuidoras como Enel, Light e Neoenergia foram buscar parcerias com a Flexpag, fintech que virou referência no atendimento a empresas de energia, água e gás com plataforma especializada em oferecer canais digitais para pagamento. Há redução de até 40% na inadimplência em campanhas com as empresas.
Micro e pequenos negócios
A inadimplência também cresce entre micro e pequenas empresas. Segundo a Serasa, 5,5 milhões de empreendimentos estavam nessa situação em maio. São quase 200 mil companhias endividadas a mais do que no mesmo mês do ano passado. Muitas vezes, a má gestão da cobrança piora a situação. Foi a deixa para que o economista Gustavo Gawryszewski fundasse a Moner.
Os clientes são creches, escolas, escritórios de contabilidade, empresas de desenvolvimento de software e logística. Ela atua de forma preventiva, alertando o cliente do vencimento da dívida por e-mail ou SMS, diz Gawryszewski:
"Fizemos uma pesquisa com micro e pequenas empresas e descobrimos que 50% dos atrasos eram por esquecimento do cliente."