Rio: número de pessoas sem ter o que comer cresceu 400% em quatro anos
Pesquisa divulgada nesta quinta-feira mostrou que número de quem está passando fome representa 15,9% da população fluminense
Foi outro dia: mais precisamente 24 de maio, uma terça-feira. Nas caçambas dos caminhões de lixo, Robson Eduardo Santos de Sá, de 40 anos, procurava ovos — mesmo quebrados ou podres. Já que a carne, a preço proibitivo, virou miragem, essa vem sendo a única fonte de proteína no prato de sua família, que mora em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Ele trabalhava como cuidador de idosos em Copacabana, na Zona Sul do Rio, mas ficou desempregado durante a pandemia. Outras desventuras acabaram de empurrá-lo para a miséria. Há seis meses, o jeito tem sido catar comida entre o material descartado na Ceasa, em Irajá, Zona Norte da capital, a mais de 20 quilômetros de onde mora.
Robson é um dos cerca de 2,8 milhões de cidadãos que, hoje, passam fome no Estado do Rio de Janeiro: uma multidão equivalente a 15,9% da população fluminense. Esses e outros dados aterradores foram divulgados nessa quinta-feira (23) no Encontro Nacional Contra a Fome, organizado pela ONG Ação da Cidadania, e fazem parte do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, promovido pela Rede PENSSAN.
Em levantamento nacional, a pesquisa esmiuçou a situação da fome no país entre 2018 e 2022. No Estado do Rio, o estudo apontou um aumento de 400% no número de pessoas sem ter o que comer ao longo dos últimos quatro anos. Em território fluminense, gente em situação de insegurança alimentar leve, moderada ou grave — ou seja, vivendo algum tipo de restrição no acesso à alimentação — é maioria: esse grupo atingiu 60% da população do Rio, contra 32,2% de quatro anos atrás.
Diretor executivo da Ação da Cidadania, Rodrigo “Kiko” Afonso afirmou que os números do estado são assustadores, mas importantes para o governo e a sociedade pensarem em dar solução ao problema. Rodrigo reforçou que a fome tem “CEP, gênero e cor” e que os dados do estado retratam a desigualdade e os preconceitos estruturais de todo o país.
"A mulher negra é a que mais sofre com a fome hoje. Você percebe claramente nos dados. É inequívoco como o racismo estrutural, o preconceito contra a mulher, as desigualdades brasileiras têm como consequência a fome", explicou o diretor.
Para Robson Santos de Sá, a ida ao Ceasa, naquele dia 24 de maio, não foi em vão. Ele não encontrou os ovos que procurava, mas voltou para casa com algumas espigas de milho, pimentões e maçãs. De uma ponta a outra do Rio, repetem-se histórias de quem só tem enchido a barriga com a ajuda de doações, voltou a passar fome ou, pela primeira vez, experimenta o drama das panelas vazias.
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O avanço da escassez e as características principais de suas maiores vítimas também se revelam nos dados do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), do governo federal. Em todo o estado, o número de famílias em situação de extrema pobreza (com uma renda per capita de até R$ 105 por mês) inscritas cresceu 59,6% de abril de 2020 ao mesmo mês desse ano, passando de 946.090 para 1.509.899.
Em uma análise por município, cruzados os dados de pessoas cadastradas em situação de extrema pobreza em abril de 2022 com a estimativa populacional do IBGE para 2021 (a mais recente disponível), os resultados revelam que, só na Região Metropolitana, dos 22 municípios, 15 teriam mais de 20% da população em situação de imensa necessidade. Só na Nova Iguaçu de Robson, um dos municípios que lideraram o aumento das inscrições no CadÚnico durante a pandemia, a quantidade de famílias em extrema pobreza cadastradas passou de 5.265 em maio de 2020 para 9.181 em abril deste ano.
O Rio experimentou ainda uma perda da renda média do cidadão, que no primeiro trimestre de 2022 foi de R$ 1.248, contra R$ 1.387 no primeiro trimestre do ano passado. No ranking do país, o estado perdeu posições: passou da quarta maior média para a sexta, ultrapassado por Paraná e Rio Grande do Sul. Para piorar, o valor da cesta básica no Rio, com base em dados do Dieese, saltou de R$ 460,46 no início de 2019 para R$ 768,42 em abril deste ano.
Na casa de Robson vivem ele, a mãe e a irmã. Todos colecionam derrocadas nos últimos dois anos. A irmã, de 37 anos, também trabalhava em Copacabana, como empregada doméstica, e, igualmente, foi demitida no efeito dominó da pandemia. A mãe, pensionista, sofre com o agravamento da ferida de uma úlcera que toma parte de sua perna, sem encontrar tratamento adequado na saúde pública. Para custear parte dos medicamentos e insumos, como gaze para os curativos, ela contraiu empréstimos que corroem sua pensão. Sobram cerca de R$ 800 por mês, a maior parte gasta com fraldas, pomadas e outros remédios que a família não consegue obter no SUS — um único remédio, o Toragesic, subiu de R$ 38 para quase R$ 60. Não resta absolutamente nada para a comida. E, como quem tem fome tem pressa, Robson vem se virando para não ficar sem comer.
"Soube, por um grupo de WhatsApp, desse descarte da Ceasa. Mas só venho quando tenho o dinheiro da passagem de ônibus. Quando não tenho, cato latinhas e PET na vizinhança para vender para reciclagem. Na nossa família, todos sempre trabalhamos. Dificuldade sempre teve. Mas nunca tínhamos chegado a ponto de faltar comida e pedir doação. Está difícil se reerguer. Carne, por exemplo, faz um ano que não comemos em casa. O sentimento é de que estamos abandonados, e sem direito a nada", diz Robson, que só em março conseguiu aprovação para receber o Auxílio Brasil, benefício do governo federal.
No primeiro trimestre de 2021, a taxa de desocupação no Rio, segundo dados do IBGE, bateu os 19,6%, acima da média nacional de 14,9%. Nos três primeiros meses deste ano, recuou, em comparação ao mesmo período do ano passado, para 14,9%, mas ainda assim superou a taxa do país, que chegou a 11,1%. O economista Marcelo Neri, diretor da FGV Social, aponta outro dado dramático embutido nesses números. No Rio, o desemprego entre a metade mais pobre da população alcançou 38% no primeiro trimestre de 2022, contra 28% em todo o Brasil.
É dele um estudo recente sobre as faces da fome em âmbito nacional (“Insegurança alimentar no Brasil: pandemia, tendências e comparações globais”). A partir de dados do Gallup World Poll, Neri mostra que a parcela dos brasileiros que não teve dinheiro para alimentar a si ou a sua família em algum momento nos últimos 12 meses (36%) representa um recorde na série histórica, iniciada em 2006, e, pela primeira vez, superou a média mundial (35%).