Diante da iminente derrota dos estados na esfera política, especialistas ouvidos pelo GLOBO acreditam que os governos estaduais vão recorrer à Justiça contra a fixação de um teto de 17% para o ICMS sobre energia elétrica, telecomunicações, combustíveis e gás natural.
O texto foi aprovado por uma ampla maioria na Câmara na quarta-feira e não deve haver dificuldade de passar pelo Senado, segundo indicou o próprio presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que chamou a medida de inteligente nesta quinta-feira (26).
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O ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel ressalta que o artigo 155 da Constituição determina que combustíveis e lubrificantes devem ter uma alíquota única, monofásica e ad rem (cobrada sobre a quantidade produzida). A questão é que cada estado pode dar o desconto que quiser.
"Há uma carência de liderança em política tributária no país", critica Maciel.
Fernando Scaff, professor titular de Direito Financeiro USP, também acredita no risco de judicialização, caso o projeto seja aprovado no Senado. Ele ressaltou que, se por um lado a medida fere a autonomia dos estados, por outro, as empresas brasileiras estão preocupadas com a escalada de preços.
"Os lados, União e estados, não se entendem, e quem vai ter que decidir é o Supremo. Uma lástima", afirmou Scaff, que também é sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Ecos da Lei Kandir
Daniel Corrêa Szelbracikowski, sócio da Advocacia Dias de Souza, diz que uma disputa judicial é o desfecho mais provável. Para a advogada tributarista Ana Vogado, sócia do Malta Advogados, o projeto de lei causou insatisfações de todos os lados.
Enquanto os estados se insurgem contra a possibilidade de um teto para o tributo, a União demonstra que não quer arcar com perda de arrecadação, caso essa queda ultrapasse 5%.
"Essa situação se assemelha ao que aconteceu com a Lei Kandir, editada em 1996, que dispunha que a União compensasse os estados pelo ICMS não arrecadado com a desoneração das exportações", compara a tributarista.
Carlos Eduardo Navarro, professor da pós-graduação em Direito Tributário da Escola de Direito de São Paulo e sócio de Galvão Villani, Navarro, Zangiácomo e Bardella Advogados, lembra que a Lei Kandir gerou disputas entre União e estados. Porém, as decisões tomadas foram construídas com diálogo e saídas consensuais.
Para o advogado, o projeto fere a autonomia dos governos estaduais prevista na Constituição:
"Não tenho dúvidas de que esse projeto é uma afronta ao pacto federativo. Caso haja aprovação pelo Senado, acredito que o Supremo Tribunal Federal (STF) deverá declarar a lei inconstitucional."
Perdas em SP podem chegar a R$ 8,6 bi
Em São Paulo, a perda de arrecadação com os termos propostos no projeto aprovado deve girar em torno de R$ 8,6 bilhões por ano, nas contas da Secretaria de Fazenda do Estado. Para o secretário Felipe Salto, dificilmente esse dinheiro retorna, se depender do sistema de créditos proposto no projeto.
"Vai virar uma nova Lei Kandir", disse Salto a jornalistas ontem.
O secretário criticou o texto aprovado na Câmara, dizendo que sequer está claro se, para os estados, os créditos serão abatidos do estoque da dívida mantida com a União ou do seu fluxo de pagamentos.
Além da dificuldade que todos os estados terão para receber os créditos do imposto recolhido prevista por Salto, ele avalia que o efeito da medida proposta pelo governo federal não fará diferença no preço dos combustíveis.
Sobre a gasolina, nas contas da Fazenda paulista, a limitação do ICMS deve provocar um abatimento de R$ 0,10 a R$ 0,12 no preço cobrado na bomba. Valor que, estima ele, será corroído rapidamente com a elevação continuada dos preços dos combustíveis.
Segundo Felipe Salto, a estratégia de São Paulo para reverter o quadro traçado no projeto ainda não está definida. Por enquanto, prefere a torcida para que o Senado não aprove o texto que saiu da Câmara. Se o texto passar nas condições em que está, o secretário acredita que haja argumentos para contestá-lo na Justiça, alternativa que prefere evitar:
"Se o governo (federal) quiser, faz um crédito extraordinário e distribui esse dinheiro dos dividendos", propôs Salto, em referência à parcela dos lucros da Petrobras que vai para o Tesouro pelo fato de a União ser a acionista majoritária da empresa.
Há chance de o STF validar argumento do projeto
Donovan Mazza Lessa, sócio do Maneira Advogados e membro da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), concorda que os estados alegarão que sua competência para fixar alíquotas foi invadida. Mas lembrou que a Constituição prevê o princípio da seletividade — o que significa que o ICMS deve ser graduado conforme a essencialidade do bem ou serviço.
Sócio da Lippert Advogados e presidente do Instituto de Estudos Tributários e da Comissão Especial de Direito Tributário da OAB/RS, Rafael Korff Wagner reforça esse argumento. Segundo ele, o princípio da seletividade, que diz que quanto mais essencial, menor deve ser a alíquota do ICMS, já está previsto na Constituição.
Wagner lembra que, recentemente, o STF se pronunciou dizendo que energia elétrica e telecomunicações são serviços essenciais. Ele avalia que combustíveis também podem ser considerados assim:
"Os estados poderão judicializar a matéria, mas o Supremo tende a manter seu entendimento dizendo que combustível é essencial e se aplica à seletividade."
O princípio constitucional de que o ICMS deve ser menor para bens e mercadorias essenciais também é mencionado por Luiz Gustavo Bichara, sócio-fundador do escritório Bichara Advogados. No entanto, ele destaca que a interpretação sobre combustíveis é polêmica.
"Combustível é mercadoria essencial? Para muitos", dentre os quais eu me insiro, é. Porém, certamente, para os estados, não o é. Então, não tenho dúvidas de que vai gerar litígio.
Tereza Amorim, advogada tributarista sócia do Bento Muniz Advocacia, avalia que a limitação da alíquota é uma saída imediata para um problema estrutural. Esses arranjos, não raro, causam distorções econômicas, adverte:
"Como diria o ditado popular, “não existe almoço grátis”."