Itapemirim começou a operar com capital social incompatível com setor

Especialistas consideram R$ 380 mil um valor baixo. Azul tinha R$ 80 milhões quando passou a voar

Itapemirim começou a operar com capital social incompatível com setor
Foto: Divulgação/Itapemirim
Itapemirim começou a operar com capital social incompatível com setor

O contrato social apresentado pela Itapemirim Transportes Aéreos (ITA) para obter a autorização para operação junto a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) indica que a empresa tinha apenas R$ 380 mil como capital social, de acordo com documentos aos quais o GLOBO teve acesso.

Especialistas no setor aéreo avaliam que o montante é muito baixo para a operação em aviação, ainda que não haja um impedimento legal para a concessão da autorização por essa razão.

A agência reguladora defende a certificação de voo para a empresa e diz que não podia impedir operação da aérea que deixou milhares sem voar.

Os R$ 380 mil do capital social da ITA eram divididos em duas quotas. A maior parte, R$ 379 mil, era da Viação Itapemirim, empresa do setor de ônibus que já estava em processo de recuperação judicial. Os outros R$ 1 mil pertenciam ao outro sócio da empresa, Sidnei Jesus Piva, que também era o representante da Viação Itapemirim e, portanto, a única pessoa a assinar o contrato.

Especialistas no setor ouvidos pelo GLOBO, e que não quiseram se identificar, ponderam que o valor é baixo para o tamanho da operação. É o capital social que pode dar alguma garantia em momentos como esse enfrentado pela ITA, que está com o pagamento a fornecedores e dos salários de funcionários em atraso e com milhares de passageiros pedindo ressarcimento dos valores pagos em viagens canceladas.

Para se ter uma ideia, a Azul Linhas Aéreas tinha capital social de R$ 80 milhões quando iniciou a operação, em 2008, ainda com linhas regionais. Nesta época, a Azul já tinha se lançado ao mercado como uma das empresas mais capitalizadas, lembra uma fonte. Atualmente, a empresa tem capital social de R$ 4,6 bilhões.

A avaliação do professor de transporte aéreo da USP Jorge Eduardo Leal Medeiros é de que a Anac se concentra muito na parte técnica, avaliando a capacidade de uma empresa operar de forma segura, com homologação de aviões e pilotos.

"A verificação da parte financeira da empresa a Anac faz de forma muito superficial, porque se concentra na segurança operacional, se aviões são bons, se pilotos são bons. De certa forma, ela deixa esse aspecto financeiro para o mercado", afirma.

Para o professor, isso acaba trazendo outros problemas, como o mercado muito desregulado, em que o consumidor acaba sendo mais prejudicado:

"A única entidade que defende o usuário é a Anac. Ela tem que defender na parte de segurança, o que já faz com muita competência, mas tem que defender o consumidor na parte econômica-financeira"

Processo sem prazo

De acordo com os especialistas, essa etapa de concessão de autorização junto a Anac não tem um prazo definido para acabar: varia caso a caso, conforme a empresa apresente a documentação exigida pela agência, que consta em normativas e no código aeronáutico.

Na avaliação de um desses profissionais, o crivo da Anac atesta que a agência avaliou que a companhia teria capacidade financeira, porque para ter a concessão da autorização já precisa ter profissionais contratados, programa de treinamento e manutenção, além dos equipamentos.

Uma resolução publicada em 2016 resolveu que não está no âmbito das competências legais da Anac avaliar o capital financeiro, mas apenas o cumprimento de requisitos operacionais e jurídicos. Especialistas dizem que isso é uma simplificação em que a Anac se exime de fiscalizar o potencial econômico-financeiro no ato da abertura e não exige mais capital mínimo para abrir, mas não é impeditivo de fiscalização contábil.

Em entrevista publicada nesta segunda-feira no GLOBO, Rafael Botelho, superintendente de Serviços Aéreos da Anac, afirmou que exigir um capital social mínimo da ITA ou de qualquer outra companhia não evitaria crises ou suspensão de operações:

"O capital social integralizado não representa dinheiro em caixa, isso não impediu a quebra da Avianca Brasil, da TransBrasil ou da Varig. A gente tem altos custos envolvidos na abertura de uma empresa aérea, como contratação de funcionários, treinamento, contratos de manutenção de aeronaves. Se colocarmos mais travas, podemos tirar oportunidade de geração de empregos, criação de rotas ou competição de preços."

Denúncias envolvendo os sócios

Documentos obtidos pelo GLOBO mostram que o sócio da empresa, Sidnei de Jesus Piva, tem quatro registros diferentes de CPF e responde a 66 processos na justiça. Um dos especialistas consultados afirmou que a Anac tem autonomia para verificar o passado dos sócios das companhias, mas isso não é uma obrigação.

Ele pondera, no entanto, que por se tratar de um órgão regulador que vai outorgar um serviço público, a agência deveria ter o dever de diligência, de ser extremamente rigorosa, ainda mais por se tratar de uma empresa com capital social baixo.

A Anac foi questionada sobre o processo específico da ITA e se limitou a afirmar que o processo de outorga “seguiu o mesmo procedimento adotado para as demais grandes empresas que voam no país”. A agência ainda ressalvou: “É importante também destacar que a Itapemirim Transportes Aéreos não é a mesma empresa Itapemirim do transporte rodoviário”. Não houve comentário sobre a “Itapemirim do transporte rodoviário” constar no quadro societário da empresa aérea.

A nota da Anac ainda fala genericamente sobre o processo de outorga de empresas para a prestação de serviços aéreos, que exige uma série de documentos, com aspectos operacionais e legais que foram atendidos pela ITA.

Questionada a respeito do capital social, a ITA afirmou que “faz parte do Grupo Itapemirim, que conta com 68 anos de história no transporte rodoviário nacional” e informou que os valores de investimento para a companhia aérea são confidenciais.

Em relação ao processo de concessão de autorização de transporte junto à Anac, a aérea disse que o trâmite foi feito entre agosto de 2020 e maior de 2021 e “seguiu os mais altos padrões exigidos pela agência reguladora” com a comprovação de capacidade operacional e de segurança.

Sobre as acusações ao sócio Sidnei Jesus Piva, como a posse de mais de quatro números de CPF, a companhia afirmou que “todas as denúncias já foram ou estão sendo devidamente esclarecidas no âmbito do Poder Judiciário, comprovando a inocência em todos os casos”.