Fim do auxílio emergencial vai mergulhar o Brasil na fome
Pelo menos 28,9 milhões estão abaixo da linha da pobreza
Com o fim do auxílio emergencial neste mês, milhares de brasileiros deverão mergulhar ainda mais na pobreza e na pobreza extrema. O governo federal não vai prorrogar o programa criado para socorrer os trabalhadores sem ganha-pão na pandemia, que neste ano, em sua terceira etapa, atendeu 39,4 milhões de pessoas (contra 68,1 milhões, no ano passado), segundo dados do Ministério da Cidadania. O presidente Jair Bolsonaro agora optou por investir no novo Auxílio Brasil de R$ 400 para substituir o Bolsa Família, que completa 18 anos. O pagamento, no entanto, será limitado aos inscritos no CadÚnico.
O problema é que a União manteve a suspensão de novos cadastros por mais 120 dias, a partir de outubro. E 1,2 milhão de cidadãos já estavam na fila de espera do antigo benefício de transferência de renda. Fora do banco de dados federal, eles podem não ser contemplados pelo Auxílio Brasil.
Com isso, o grupo de 27,7 milhões de brasileiros que já perderam o auxílio emergencial deve chegar a 28,9 milhões de desamparados. Isso sem contar os que ainda não têm inscrição no CadÚnico e poderão nem conseguir se inserir.
Para entender as dificuldades dos brasileiros, o EXTRA conversou com duas Marias, ambas mães solo, que não conseguem dar de comer às filhas e temem pelo futuro.
"Com o fim do auxílio (emergencial) e a pandemia, vai ser muito difícil para os pobres. Se agora mal conseguimos nos alimentar, imagina com o fim", diz Maria Diniz Silva, de 41 anos, moradora de Santa Cruz, na Zona Oeste.
"É muito triste você ver sua filha pedindo uma coisinha melhor para comer e não ter para dar. Só ter feijão e arroz com ajuda de algumas pessoas", lamenta Maria Nascimenta Luciano da Silva, de 32 anos, moradora da Muzema, também na Zona Oeste, que acabou tendo seu auxílio emergencial bloqueado.
Auxiliar de serviços gerais desempregada, Maria conta que trabalhou três meses com carteira assinada e, por isso, teve o auxílio suspenso, como determina a lei. Mas após ser demitida, o benefício não voltou a ser pago.
"Consegui um emprego em fevereiro e em maio fui mandada embora, porque a firma não iria manter todos trabalhando. Como não completei o tempo mínimo de trabalho para receber o seguro-desemprego, estou desde maio dependendo da solidariedade das pessoas", diz Maria, que recorreu à Rede Brasileira de Renda Básica para tentar voltar a receber o auxílio emergencial.
Além do fantasma da Covid-19, o brasileiro convive com a fome. O estudo “Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil”, mostra que com a crise econômica agravada pela pandemia, 19,1 milhões de brasileiros disseram passar 24 horas ou mais sem ter o que comer. Mais da metade (55%) da população sofria de algum tipo de insegurança alimentar em dezembro de 2020, segundo o estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional.
Governo erra e quer pagar dívida com RPV
Embora a lei que regulamenta o auxílio emergencial determine que as mães chefes de família têm direito à cota dobrada do benefício, desde a primeira etapa de pagamento, Maria Diniz Silva, de Santa Cruz, recebe apenas o valor menor liberado a outros trabalhadores.
"Sem trabalho, é difícil viver com R$ 150. E, com o fim do auxílio emergencial, será um caos, com muitas pessoas na linha da pobreza. Depois de anos e anos, chegamos nesse ponto em que para comer está difícil. Tudo caro! Carne não se vê mais no prato do brasileiro. O ovo, que era barato, agora custa o que custava a carne de segunda", critica Maria, que entrou na Justiça para receber as cotas a que teria direito, e o governo não pagou.
"O juiz deu a sentença favorável em 30 de maio passado, e estou lutando para receber R$ 7.317,09 de atrasados, porque a União quer me pagar por RPV (Requisição de Pequeno Valor)", conta Maria, que testou positivo para Covid-19.
No dia 11, a Defensoria Pública da União, que está com o caso de Maria, fez uma petição para incluir no processo o laudo médico de Covid-19. A ideia é fazer com que o governo pague logo a dívida que tem com ela:
"É humilhante e vergonhoso depender desse auxílio e ter que lutar por uma coisa a que tive direito desde o início. Sempre trabalhei de carteira assinada, sempre contribuí com INSS, e quando preciso da ajuda do governo é essa luta. Só quero que tudo volte ao normal, que esse vírus acabe, e que as vagas de emprego voltem."
Pressão maior sobre os mais pobres
A pesquisa “Desigualdade de Impactos Trabalhistas na Pandemia", coordenada pelo diretor da Fundação Getulio Vargas Social (FGV Social), Marcelo Neri, mostra que a pressão maior ficou para os mais pobres. O estudo indicou que, na média de 2019, a proporção de pessoas com renda abaixo da linha de pobreza era de 10,97%, antes da pandemia, o que representa cerca de 23,1 milhões de pessoas na pobreza.
Em setembro de 2020, por causa do auxílio emergencial com valor mais alto, o número de pessoas abaixo da linha de pobreza caiu para 4,63%, ou 9,8 milhões de brasileiros. Já no primeiro trimestre de 2021, momento de suspensão do auxílio emergencial, mas devolvendo o Bolsa Família, atingiu 16,1% da população, ou 34,3 milhões de pobres. Os dados mostram um cenário desolador no início de 2021, quando em seis meses o número de pobres é multiplicado por 3,5 vezes, correspondendo a 25 milhões de novos pobres em relação aos seis meses anteriores, aponta o estudo.
O aumento da inflação, a alta do desemprego e a crise econômica reduziram o poder de compra e a renda das famílias mais pobres e empurraram mais pessoas para a pobreza. A análise é do professor Marcelo Neri.
Dados apontam que o aumento do desemprego foi a causa de pouco mais da metade (-11,5%) da queda de renda de 21,5% dos mais pobres, muito pelo reflexo do contingente expressivo de trabalhadores que deixou o mercado sem perspectiva de encontrar uma vaga ou de exercer uma atividade durante a pandemia:
"Nesse forte aumento de desigualdade, o principal elemento é a ocupação. Em particular, o aumento do desemprego é o que explica metade dessa queda de renda dos pobres. Além disso, muita gente saiu do mercado de trabalho porque não pôde exercer uma ocupação ainda por causa da pandemia."
Segundo o professor, a combinação de inflação alta e desemprego elevado leva à estagflação, que é mais um fator de impacto para os mais pobres em um momento de vários choques simultâneos — em que se juntam a pandemia, a possibilidade de racionamento de energia elétrica e os reflexos das manifestações de caminhoneiros causando efeitos no abastecimento de alimentos e combustíveis.
Nos 12 meses terminados em julho de 2021, a inflação dos pobres ficou em 10,05%, três pontos percentuais (p.p) maior que a inflação da alta renda, segundo estimativas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Nos cálculos, a taxa de desemprego da metade mais pobre subiu na pandemia de 26,55% para 35,98%. Já entre os 10% mais ricos a mesma foi de 2,6% para 2,87%.
"A gente está meio entre a cruz e a espada, com desemprego alto e inflação alta. A gente vai precisar aumentar a taxa de juros e até aumentar o desemprego para desaquecer e tentar combater a inflação. Mas ao fazer isso, o desemprego piora. É um pouco um certo cobertor curto, que não só tem que puxar, mas o cobertor encolheu nessa situação de estagflação", diz o professor.
Ele chamou atenção para a queda de renda ser maior do que a do PIB e para o aumento da desigualdade.
"Os mais pobres sofreram mais e, quando a gente abre o efeito que caracteriza a atual de estagflação, ela também é mais séria entre os mais pobres. Por uma série de coisas, como o movimento dos caminhoneiros, o racionamento de energia. São o que a gente chama de choque de oferta", completa.
Mais de 19 milhões passam fome
As condições econômicas do país, a redução da renda da população e o desemprego trouxeram como resultado o aumento do dobro das favelas no Brasil em 10 anos, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O balanço mostra que o total de comunidades subiu de 6.329, em 323 municípios, para 13.151, em 734 cidades, de 2010 a 2019.
Segundo a pesquisa da Rede Pessan, 116,8 milhões de brasileiros não tinham acesso pleno e permanente a alimentos. Desse total, 43,4 milhões (20,5% da população) não contavam com alimentos em quantidade suficiente (insegurança alimentar moderada ou grave), e 19,1 milhões (9% da população) estavam passando fome (insegurança alimentar grave).
Realizada em 1.662 domicílios urbanos e 518 rurais, a pesquisa coletou os dados de 5 a 24 de dezembro de 2020, antes da disparada da inflação nos últimos meses, que certamente piorou o cenário de aumento da insegurança alimentar.