Bolsa Família completa maioridade, mas sucesso recua com crise econômica
Referência em política pública, programa completou 18 anos nesta semana; inflação faz benefício não ser suficiente para abastecer geladeiras das famílias, contam beneficiárias
O dia começa logo cedo, mais precisamente às 6 horas da manhã, no bairro Jardim Colombo, Zona Sul de São Paulo, onde mora Lucimar Crispim de Souza, de 35 anos. Ao acordar, prepara o café da manhã da filha, em uma mesa pequena com apenas uma cadeira. Enquanto a jovem, de apenas 5 anos, assiste Masha e o Urso na televisão, Lucimar coloca à mesa uma bolacha e um copo de leite. Em seguida, vai para seu quarto para arrumar o material da jovem sem mesmo sentar para se alimentar.
"Meu tempo e meu dinheiro são destinados a ela apenas", conta a mãe.
Após todo preparo, ela volta ao fogão e prepara um café aos moldes tradicionais: no bule e coador, em um fogão branco, cheio de marcas da realidade periférica do Brasil. Logo, vem seu irmão para comer um pão com manteiga. Após quase três horas, a mulher senta para tomar seu café matinal.
Desempregada, Lucimar é beneficiária do Bolsa Família há cerca de dois anos. Recebe em torno de R$ 140 por mês, valor que não dá para comprar quase nada no supermercado.
"Hoje eu consigo comprar algumas bolachas e o leite da minha filha. É muito difícil, não consigo sair com muita coisa do mercado", lamenta.
"Eu não consigo gastar nada comigo. Todo o dinheiro vai para sustentar ela [filha]", completa.
A mãe lembra que há dois anos conseguia comprar muito mais produtos expostos nas prateleiras. "Está tudo muito caro. Antes eu conseguia fazer uma compra para ela e meu irmão, hoje não".
Andando alguns metros pela periferia da Zona Sul da capital paulista, encontramos Alexandra de Oliveira, desempregada e mãe de duas crianças, uma menina de oito anos e um garoto de cinco. Perto das 12h ela começa a correr contra o tempo para deixar o almoço das crianças pronto e o material delas intactos para irem à escola.
Sentada na cama, trocando a roupa do filho, ela lembra das dificuldades que passa para sustentar a família. Embora o marido trabalhe como cabeleireiro, o valor total que recebe de Bolsa Família, aproximadamente R$ 269, serve apenas para pagar a van da filha mais velha e alimentação para as crianças.
"A escola da minha filha é muito longe, então preciso pagar uma perua para levá-la. O que sobra, compro alimentos para as crianças, normalmente uma carne, pão e manteiga", afirma.
Ao sentar na mesa, o cardápio do dia: arroz, feijão e ovo. O banquete é o único que pode ser oferecido no dia, já que a carne não estava presente na geladeira.
Alexandra lembra que olhar as prateleiras do supermercado, atualmente, é sinônimo de desespero e fica em dúvida do que comprar. As escolhas precisam ser com cautela para caber no orçamento mensal da família.
"Antes eu conseguia fazer compras para o mês no supermercado. Hoje, minhas compras duram alguns dias", conta.
"É muito difícil olhar as prateleiras e não conseguir comprar quase nada. Fico sem saber o que fazer", completa.
Programa completou 18 anos e hoje não é nem sombra do que já foi
A realidade de ambas não difere muito do dia a dia de outros 13,9 milhões de beneficiários do Bolsa Família. Criado em 2002 pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o programa teve como inspiração o Bolsa Escola, criado pelo seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
Na última quarta-feira (20), o programa completou 18 anos, colecionando polêmicas e glórias durante sua trajetória, das incertezas em relação ao valor do benefício às glórias pela redução do índice de pobreza no país.
Em 2002, cerca 26,9% da população brasileira estava na linha da extrema pobreza, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE). Após dois anos, quando o programa entrou de fato em vigor, o índice era maior (28,15%), mas não demorou muito para cair, e atingiu seu menor nível em 2014, quando 8% da população estava abaixo da linha da pobreza. O Brasil chegou a sair do mapa da fome no ano em que Dilma Rousseff (PT) se reelegeu, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), mas pode voltar em breve.
"Todos os estudos mostram que foi muito efetivo. Então, hoje, esse programa é uma vitrine, uma política pública que tem sido exportada do Brasil para vários outros países.", afirma Renato Veloni, professor de economia do Ibmec-SP.
"Esse tem sido um investimento bastante efetivo. Ele consome quase nada do orçamento público, porque não só o valor é muito baixo, mas você aporta esse dinheiro na economia. A economia gira e acaba retornando em impostos para os cofres do governo".
Com as sucessivas crises econômicas, os pesados reajustes inflacionários e os pequenos aumentos nas parcelas do benefício, o Bolsa Família passou a ficar insustentável. O valor médio de R$ 189 já não era mais suficiente para segurar o aumento da pobreza no Brasil, que triplicou entre agosto de 2020 e março de 2021.
Segundo dados da Fundação Getúlio Vargas (FGV), no segundo semestre do ano passado, cerca de 9,5 milhões eram considerados pobres no país. Em março deste ano, no entanto, o número subiu para 27 milhões.
"Se fornecer R$ 300 para uma família que vive na região metropolitana de São Paulo, ela vai conseguir comprar uma cesta de bens bem mais limitada do que, por exemplo, oferecer R$ 300 para uma família que está no sertão nordestino", explica.
"É um poder de compra muito diferente, e a gente não faz esse tipo de discriminação. Seria necessário um aprimoramento no Cadastro Único para conseguir pagar mais para as pessoas que morem em lugares em que o custo de vida seja maior", comenta Veloni.
Auxílio Brasil resolverá o problema?
Para tentar diminuir a pressão sobre o governo federal e, ao mesmo tempo, angariar votos para as eleições de 2022, o Palácio do Planalto decidiu criar o Auxílio Brasil, programa social mais robusto em parcelas e beneficiários se comparado ao Bolsa Família. Entre idas e vindas, o presidente Jair Bolsonaro quer reajustar o valor para R$ 400, proposta que divide a a equipe do ministro Paulo Guedes, responsável por liberar o aporte para o pagamento do programa.
"Tomara que eles consigam superar o Bolsa Família. A ideia de ampliar esse benefício é interessante. A ampliação da proposta é tímida, embora não tenha batido o martelo. 20% de reajuste é duas vezes a inflação dos últimos 12 meses", afirma o professor de economia do Ibmec-SP.
"Mas é necessário que o programa facilite os critérios para beneficiários aderirem ao novo auxílio. Se não fizer isso, irá trazer uma complexidade maior para o sistema, o que não costuma ser bom em termos de políticas públicas. De toda forma, é algo que me parece estar sendo desenhado ainda", opina Renato Veloni.
Embora o valor já tenha seu martelo batido pela ala política, ainda é necessário decidir de onde virá o dinheiro para abastecimento do novo benefício.
"Não temos clareza de onde buscar esses recursos. Precisamos contar com a aprovação a reforma do IR e da PEC dos precatórios. Se aprovadas essas duas medidas, a gente poderia ficar confortável de que há uma fonte segura de financiamento para essas iniciativas. Mas se colocarmos isso sem uma fonte segura de financiamento, vai acabar por piorar as finanças públicas", ressalta o professor.
Para Lucimar, beneficiária do Bolsa Faília, o novo valor dará uma boa margem para pagar as contas de casa e conseguir melhorar a cesta básica da família.
"Vai desafogar muito a minha vida. Se realmente tiver esse aumento, vou poder, pelo menos, melhorar a alimentação da minha filha", afirma.
Alexandra, no entanto, diz que o aumento não vai alterar tanto em sua vida. Admite, porém, que qualquer reajuste é bem-vindo em momentos de crise econômica.
"Não vai mudar muito porque eu terei um reajuste de R$ 30 neste começo. Se aumentar para R$ 400 aí sim será ótimo, mas ainda estará complicado por causa do preço da comida".
"Mas não posso reclamar. Em momentos como esses, temos que agradecer qualquer reajuste ou ajuda", completa.