Um litro de leite ou uma lata de cerveja por R$ 1, um pé de alface por R$ 0,50 e barris de chope de graça. No último ano, a crise financeira causada pela pandemia de covid-19 se agravou e levou grupos de amigos, vizinhos ou até desconhecidos que moram perto a criarem grupos para compras coletivas, em busca de preços mais baixos.
O aplicativo mais conhecido para fazer esse tipo de compra no Brasil é o Facily, que cresceu exponencialmente por conta da crise. Ele teve 2 milhões de downloads nos primeiros dois anos e meio de operação, e igualou essa marca nos últimos oito meses, sendo metade disso só nos dois mais recentes.
O desemprego, a perda do poder de compra e a inflação acumulada nos últimos meses fizeram a população procurar opções mais baratas de compra, principalmente nas periferias das oito grandes cidades do Brasil onde o serviço está disponível.
Ao mesmo tempo, devido ao grande volume de acessos e pedidos, usuários do aplicativo Facily disseram à BBC News Brasil que ele hoje enfrenta problemas com atrasos nas entregas. A empresa diz que está investindo em infraestrutura para acabar com o problema.
Mas como o serviço consegue vender os mesmos produtos encontrados nas prateleiras do supermercado a um preço tão baixo?
Isso ocorre porque o aplicativo liga distribuidores de produtos a grupos de pessoas dispostas a se juntar para comprá-los em grande volume. O preço cai porque uma série de custos da cadeia de venda tradicional — como os supermercados, por exemplo — é cortada quando o produtor repassa sua mercadoria diretamente para o cliente final.
Desta forma, o comprador economiza em transporte, armazenamento e funcionários de uma loja, que normalmente são embutidos no preço final do produto. Mas precisa estar disposto a ter uma oferta menor de produtos, a buscá-los em casas na vizinhança e, em alguns casos, aguardar semanas e até meses pela entrega.
Alternativa para economizar
Um estudo do grupo de pesquisas Food for Justice, da Universidade Livre de Berlim, apontou que, em abril de 2021, 59,4% dos domicílios do Brasil se encontravam em situação de insegurança alimentar — quando uma família diz ter preocupação com a falta de alimentos em casa ou já enfrenta dificuldades para conseguir fazer todas as refeições.
De acordo com o estudo, os mais altos percentuais de insegurança alimentar são registrados em famílias com apenas uma fonte de renda (66,3%). Isso se acentua ainda mais quando essa responsável é uma mulher (73,8%) ou uma pessoa parda (67,8%) ou preta (66,8%).
É o caso de Tânia Taylor Corrêa da Silva, de 34 anos. Ela diz que inicialmente desconfiou do aplicativo, mas conta que ele "salvou a família" durante a crise graças à economia que fez com os descontos da plataforma.
Desempregada, Tânia afirma que hoje faz a maior parte das compras do mês assim. "Eu tenho três crianças, e estou economizando muito nos gastos com leite. Compro uma caixa com 12 unidades por semana. Com o Facily, pago R$ 12. No mercado, custaria R$ 45", diz ela.
"Eu recebo Bolsa Família e o pai da minha filha de 1 ano e 6 meses ajuda um pouco financeiramente, mas eu só tive condições de alimentá-la com a ajuda desse aplicativo."
Tânia diz que também usa o aplicativo para comprar sabonete, amaciante, sabão em pó e outros itens de higiene pessoal.
Demora e desconfiança
Os usuários do Facily entrevistados pela BBC News Brasil dizem que aprovam o aplicativo, exceto o tempo de espera para receber os produtos. Tânia conta que já se acostumou com a demora, mas se organiza para que não falte nada em casa por conta dos atrasos.
"Eu faço uma planilha com meus pedidos e vou comprando adiantado. Quando vejo que meu óleo vai acabar, eu compro agora porque sei que dá para esperar. Mas, quando o produto está no fim, tem que ir no mercado mesmo", explica.
Tânia diz que outro problema é a entrega de produtos frescos, como hortifruti. Ela conta que muitas vezes eles chegam para ela já estragados ou nem mesmo são entregues. "Fiz um pedido em março, e não veio o saco de laranjas que eu comprei. Pedi porque era um saco de 10 kg por R$ 5. Eles me reembolsaram, mas não vale a pena o transtorno", conta.
A pedagoga Ivani Rosa da Silva, de 43 anos, passou por algo semelhante. Ela explica que parou de usar o aplicativo porque ocorrem muitos atrasos e algumas vezes o produto nunca chega.
"Teve compra que fiz em março e vai chegar agora. Os canais para reclamar são péssimos e sempre falam que vão mandar um vale e, na maioria das vezes, não resolve nada. As pessoas do grupo que montei também estão com vontade de desistir", afirma.
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Mas ela ainda quer dar mais um voto de confiança. "Para mim, faz muita diferença. Eu moro com meu marido e mais quatro filhos. É muita economia."
Em entrevista à BBC News Brasil, o presidente e fundador do aplicativo, Diego Dzodan, reconhece os problemas e disse que a empresa está trabalhando para resolvê-los.
"A proposta de valor acabou sendo tão boa que cresceu muito mais rápido do que conseguimos expandir e os prazos de entrega acabaram sendo maiores. Mas foram percentuais muito pequenos. Nesses casos, pedimos desculpas porque confiaram na gente e não fizemos um trabalho como deveria ter sido feito", diz.
Dzodan afirma ainda que todos os pedidos em atraso serão entregues e que a empresa busca novas parcerias de desconto. A empresa também diz ter triplicado o número de atendentes para atender melhor aos chamados e reclamações.
"Quem depositou confiança em nós, pode continuar. Vamos entregar todos os pedidos e estamos correndo para montar nossa nova infraestrutura. Vamos aumentar nossa capacidade de entrega. É um percentual mínimo de pessoas com problemas, mas é inaceitável", afirma à reportagem durante entrevista por teleconferência no centro de distribuição da empresa, em São Paulo.
Inspiração na China
O fundador da Facily tem no currículo uma passagem de quatro anos pelo Facebook e conta que encontrou na China a inspiração para criar o aplicativo no Brasil.
"Aprendemos estudando empresas chinesas. Esse modelo está muito desenvolvido por lá, onde é chamado de social commerce [comércio social, em tradução livre]. Identificamos que o Brasil tem muito espaço nesse segmento e estamos crescendo de uma forma muito consistente desde março de 2020", afirma.
Dzodan acredita que a plataforma faz sucesso porque muitos brasileiros têm acesso à internet e porque não cobra pela entrega. "A penetração da internet é muito forte, chega a 73% da população. Na pandemia, vimos que a internet é ferramenta ideal para compras. O único ponto é que o frete criava uma barreira, deixava de fora boa parte da população", explica.
O fundador da Facily diz que produtores de banana, por exemplo, vendem o produto a R$ 1 para supermercados, que repassam a até R$ 5 ou R$ 8 para o consumidor final.
"Não é que haja má intenção nisso. É que ele inclui a margem do agregador, do centro de distribuição e do varejista. Fomos até o produtor para diminuir esse custo logístico enorme do e-commerce . E aproveitamos que o custo de um caminhãozinho para entrega nos pontos de retirada é o mesmo para centenas de pedidos feitos pelo mercado", afirmou.
Concorrência
Especialistas em tecnologia ouvidos pela reportagem disseram que a Facily não disputa mercado diretamente com nenhum aplicativo no Brasil.
Mas o coordenador do MBA de marketing digital na Fundação Getúlio Vargas (FGV), Andre Miceli, diz que tanto o WhatsApp quanto o Instagram, que também lançaram serviços de compras, se tornaram concorrentes do Facily. Recentemente, a B2W também lançou uma plataforma de social commerce chamada OOOOO.
Miceli avalia porém que nenhuma delas é como o Facily, em que usuários se juntam para comprar produtos em larga escala e conseguir desconto. "(Elas) são concorrentes por terem funcionalidades de social commerce . Não são ferramentas idênticas mas estão numa mesma categoria", afirmou.
De acordo com Miceli, o comércio digital cresceu pouco mais de 40% no Brasil em 2020, atingindo quase R$ 90 bilhões.
A Facily diz que quase não investe em publicidade e que usa essa economia para dar bônus aos clientes, como as vantagens e descontos que eles ganham ao indicar um novo cliente. O fundador da empresa diz que o seu serviço é diferente dos sites de compras coletivas que fizeram sucesso no início da década passada. O executivo defende que eles usavam um modelo insustentável.
"Levar mil clientes por semana a mais numa pizzaria atraídos por cupons capta muita gente , mas o custo de cada pizza é o mesmo, porém vendida a um preço mais barato. Nossa tecnologia, por outro lado, é usada para reduzir o custo total do sistema e o fornecedor continua com o mesmo lucro."
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