Num momento em que o país tem registrado números diários de mortes por covid-19 que ultrapassam 4 mil e diversos Estados e municípios reforçam medidas de distanciamento social, na tentativa de conter a propagação do vírus, as duas principais estatísticas do mercado de trabalho brasileiro apresentam problemas, apontam economistas.
O Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados), levantamento sobre o mercado de trabalho formal divulgado mensalmente pelo Ministério da Economia, passou por uma mudança de metodologia em 2020, que tornou impossível a comparação dos dados recentes com a série histórica mais longa.
Além disso, o saldo positivo de 400 mil vagas com carteira assinada em fevereiro deste ano, mês com menor número de dias, feriado de Carnaval, queda na produção industrial e em que a pandemia já dava sinais de piora, acendeu um sinal de alerta para os analistas, de que o Caged está bastante descolado do desempenho da atividade econômica.
Com relação à Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua, pesquisa amostral produzida pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que revela a taxa oficial de desemprego do país, um estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) divulgado em março apontou que a coleta por telefone em meio à pandemia aumentou o índice de não resposta, levando a uma subestimação do emprego formal.
O IBGE não quis comentar o estudo do Ipea sobre a Pnad Contínua, já o Ministério da Economia reiterou a confiabilidade nos dados do Novo Caged e disse que os fortes saldos positivos podem ser resultado do BEm (Benefício Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda), programa que permitiu a redução de jornadas e salários e suspensão de contrato dos trabalhadores formais em meio à pandemia.
Falta de dados confiáveis prejudica políticas públicas
Segundo economistas, a falta de estatísticas precisas sobre o mercado de trabalho dificulta a elaboração de políticas públicas em resposta ao desemprego.
Além disso, sem dados precisos sobre o nível de ociosidade da economia, os analistas têm dificuldade para projetar a inflação e os juros futuros no país e o Banco Central tem problemas para calibrar a política monetária - uma taxa básica de juros mal calibrada pode afetar negativamente o desempenho da atividade econômica.
"Estamos às cegas, sem saber com exatidão o que se passa no mercado de trabalho", afirma Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados.
Para Vale, os problemas são sintomas de um governo que não entende a necessidade de boas estatísticas para elaboração de políticas públicas, o que ficou evidente, por exemplo, no corte de mais de 90% na verba para realização do Censo demográfico este ano.
Na semana passada, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) voltou a criticar as estatísticas de desemprego do IBGE.
"Estamos criando empregos formais, e bastante, mês a mês, mas tem aumentado o desemprego por causa dessa metodologia do IBGE, que atendia ao governo da época. Esse tipo de metodologia, no meu entender é o tipo errado. Vou sofrer críticas do IBGE, mas eles podem mudar a metodologia", declarou em entrevista à CNN Brasil na última quinta-feira (08/04).
As estatísticas de emprego do IBGE seguem metodologia internacional, a partir das recomendações da OIT (Organização Internacional do Trabalho).
Mudança de metodologia no Caged
No início de 2020, o Caged deixou de ser divulgado durante quatro meses, entre fevereiro e maio daquele ano .
Esse hiato, bem no início dos efeitos da pandemia no Brasil, aconteceu devido a uma mudança na metodologia de coleta dos dados.
Antes, a prestação de contas pelas empresas ao Ministério da Economia era feita por um sistema próprio do Caged. Com a mudança, ela passou a ser feita através do eSocial (Sistema de Escrituração Fiscal Digital das Obrigações Fiscais, Previdenciárias e Trabalhistas).
Após a alteração, o Ministério da Economia identificou um problema de subnotificação dos desligamentos, o que poderia inflar artificialmente o saldo de empregos - que é calculado pela diferença entre o número de admitidos e desligados a cada mês.
A pasta diz que o problema foi solucionado com uso de dados do sistema Empregador WEB, utilizado para solicitação de seguro-desemprego de trabalhadores demitidos.
A nova metodologia, no entanto, também mudou o universo de trabalhadores abrangido pelo Caged. No Novo Caged, os trabalhadores temporários agora são de preenchimento obrigatório pelas empresas e não mais opcional, como ocorria até dezembro de 2019.
Além disso, segundo nota técnica publicada pelo Ministério da Economia , categorias que antes não eram consideradas como emprego formal passaram a entrar na conta, como os bolsistas.
Ministério induz público ao erro
Diante dessas mudanças, os economistas alertam que o Ministério da Economia induz o público ao erro ao divulgar os resultados do Novo Caged como "recordes históricos" ou "o melhor resultado para o mês em 30 anos". Isso porque a nova série não é igual à anterior e, com isso, a comparação no horizonte mais longo está errada.
"Quando você muda a forma de medir uma série, ela não pode mais ser comparada com a que era medida de uma forma diferente anteriormente", explica Daniel Duque, pesquisador do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas).
"Você está comparando banana com laranja, aí gera essas hipérboles", reforça Luciano Sobral, economista-chefe da NEO Investimentos. "Se você se deixar levar pelo que o ministério está tentando vender como a situação do mercado de trabalho, tem uma impressão errada da economia."
Procurado, o Ministério da Economia defendeu que é possível sim, fazer a comparação.
"A mudança do sistema de envio de dados não impede dizer que um mês foi melhor ou o pior, desde que sejam feitas as devidas ressalvas metodológicas, como sempre fizemos. Em todas as coletivas e materiais enviados para a imprensa sempre fizemos observações de se tratar de uma nova série, iniciada em janeiro de 2020", afirmou a pasta, por e-mail.
Caged deixou de ter aderência com a atividade
Os economistas destacam ainda que outro problema do Novo Caged é que ele deixou de ter aderência com a atividade econômica.
No passado, o indicador evoluía de forma muito próxima ao desempenho da economia segundo o IBC-Br (Índice de Atividade Econômica do Banco Central), considerado uma espécie de "prévia do PIB", divulgado mensalmente pela autoridade monetária. Ou seja, quando a economia ia bem, cresciam as contratações, e quando ia mal, predominavam as demissões.
No período recente, essa aderência se perdeu.
"O Caged começou a chamar a atenção desde o ano passado, com os números do segundo semestre excessivamente fortes, para uma recuperação que ainda estava muito lenta", observa Vale. "Especialmente alguns segmentos de serviços estavam muito longe de ter uma recuperação efetiva e tivemos números de Caged semelhantes a momentos de crescimento muito forte da economia."
"O dado de fevereiro especialmente - 400 mil (empregos gerados), num mês mais curto, que tem feriado e com a pandemia já muito avançada, pensar em grandes contratações num mês que os empresários olhavam à frente e viam toda a situação de saúde pública tirar potencial de demanda e de crescimento - não parecia ser um mês para ter um saldo tão forte", avalia o economista-chefe da MB Associados. "Então isso causa um certo espanto."
"Desde o último trimestre do ano passado, estamos observando altas muito fortes do Caged. Nunca teve altas tão elevadas na série histórica toda, nem em 2010 [ano em que o PIB cresceu 7,5%]", observa Duque, do Ibre-FGV.
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"Nesse sentido, o dado de fevereiro não me surpreendeu, mas nem eu, nem ninguém, conseguiu ainda explicar esse fenômeno, então continua sendo estranho", completa o pesquisador.
Procurado, o Ministério da Economia creditou a discrepância ao programa de redução de jornadas e salários que vigorou entre abril e dezembro de 2020.
"Realizamos o maior programa de preservação de empregos da história do país. O Benefício Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda (BEm), que vai diretamente no mercado formal", afirmou a pasta, em resposta a pedido de posicionamento feito pela BBC News Brasil.
"Esse programa atingiu em torno de 30% do mercado de trabalho formal celetista (de acordo com a CLT - Consolidação das Leis do Trabalho) do país. Atualmente, segundo a Dataprev, mais de 3 milhões de trabalhadores seguem protegidos, uma vez que a lei prevê a garantia provisória do emprego para os beneficiários do programa. Com isso, há uma melhoria nas admissões e uma estagnação das demissões, devido ao efeito do BEm, aumentando, assim, o saldo", completou o ministério.
IBGE teve problemas na coleta da Pnad por telefone
Embora o Caged tenha sido alvo de mais críticas pelos economistas no período recente, a Pnad Contínua também enfrenta problemas que podem estar prejudicando a aderência dos dados à realidade do mercado de trabalho.
Um estudo realizado pelos pesquisadores Carlos Henrique Corseuil e Felipe Russo, do Ipea, mostrou que a mudança da forma de coleta da pesquisa, de presencial para por telefone, devido à pandemia, provocou uma forte queda no número de entrevistados que seriam ouvidos pela Pnad pela primeira vez.
Na pesquisa, cada entrevistado é ouvido cinco vezes ao longo dos meses, para acompanhar a evolução de sua situação de emprego e renda.
Os pesquisadores constataram que essa não resposta não era uniforme entre os diferentes tipos de vínculo empregatício, e que aqueles que de fato responderam ao IBGE tinham menor probabilidade de ter emprego formal.
"O IBGE, para compensar as não entrevistas, acaba aumentando o peso de quem foi entrevistado. Então, com esse procedimento, ele acabou dando mais peso a esse grupo que foi efetivamente ouvido, que era um grupo que tinha probabilidade maior de responder que não estava ocupado num emprego formal", explica Corseuil.
Diante disso, os técnicos do Ipea estimam que o número de empregados com carteira assinada pode ter sido subestimado em cerca de 1,5 milhão no segundo trimestre de 2020 e em 1,2 milhão no terceiro trimestre daquele ano. Mas, segundo os pesquisadores, esse problema tende a ser mitigado com o passar do tempo e o aperfeiçoamento da coleta por telefone pelo IBGE.
"É preciso deixar claro que (a queda no número de entrevistas em pesquisas feitas por telefone) foi um problema comum a todos os países que fazem pesquisas domiciliares baseadas em cadastros de endereço", destaca Corseuil.
"E que esse problema aconteceu na Pnad porque foi negado ao IBGE o acesso aos telefones", lembra o técnico do Ipea.
Em 17 abril de 2020, uma medida provisória permitiu ao IBGE ter acesso aos dados cadastrais dos clientes das companhias telefônicas. No entanto, uma liminar bloqueou o acesso do instituto a essas informações logo em 24 de abril, e foi referendada pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em 7 de maio.
Procurado, o IBGE não quis comentar os resultados da pesquisa do Ipea.
A BBC News Brasil também questionou o instituto sobre por que a Pnad Covid-19, pesquisa criada no ano passado para mensurar os efeitos da pandemia sobre o mercado de trabalho e a saúde dos brasileiros, foi descontinuada em dezembro de 2020.
O IBGE respondeu reencaminhando nota publicada em outubro do ano passado que informava que "o encerramento do ciclo da pesquisa está relacionado ao planejamento inicial de pesquisa de pulso de caráter temporário e à redução da sobrecarga dos informantes".
"Por se tratar de pesquisa realizada por meio de um painel fixo de domicílios, os mesmos informantes são selecionados para responder ao questionário todos os meses, o que naturalmente implica desgaste dos entrevistados", explicou o IBGE, à época.
Técnicos do IBGE afirmam ainda que o instituto estava usando na coleta da Pnad Covid-19 funcionários contratados como temporários para o Censo. Como o instituto acreditava que o levantamento demográfico decenal seria realizado em 2021, após ser adiado em 2020 devido à pandemia, esses trabalhadores temporários teriam que retornar às tarefas do Censo.
Por que a falta de dados confiáveis é um problema
Assim, no pior momento da pandemia, o Brasil não conta mais com a Pnad Covid-19 e seus dois principais indicadores permanentes do mercado de trabalho - o Caged e a Pnad Contínua - têm problemas que dificultam a interpretação dos dados pelos analistas.
"O impacto é geral, porque não se tem ideia de fato do que está acontecendo no mercado de trabalho e que políticas precisariam ser feitas para mitigar o desemprego", diz Vale, da MB Associados.
"Se você passa a impressão de que o emprego está super bom, está super forte, que o saldo de vagas está super tranquilo, você diminui a preocupação, por exemplo, com a população mais pobre que está desempregada", afirma o economista.
Sobral, da NEO Investimentos, explica que a incerteza também prejudica o trabalho do Banco Central no ajuste da taxa básica de juros.
"Do ponto de vista do mercado, o principal elemento para se mensurar a capacidade ociosa da economia é o mercado de trabalho", explica Sobral. "O mercado de trabalho estando mais ou menos aquecido tem pesos diferentes na inflação e a inflação afeta a projeção de juros."
"Então estamos no escuro com relação ao tamanho dessa folga no mercado de trabalho e o quanto isso vai impactar a inflação futura. Nós no mercado temos esse problema e o Banco Central também tem esse problema, então é um nível a mais de dificuldade para analisar o que está acontecendo no mercado ou formular a política monetária e a política econômica."
Para Vale, o problema é reflexo de um descaso mais amplo do governo atual com a produção de dados estatísticos.
"Me parece que há um descaso geral com as estatísticas", avalia Vale. "Precisaria haver um esforço maior do governo, um cuidado maior em apresentar estatísticas bem feitas, porque quem vai pagar o preço desse descaso somos nós mesmos."
"Sem informações corretas, há dificuldade de fazer políticas públicas adequadas. Mas esse é um governo que não é muito fã de políticas públicas", diz Vale.
"É um governo que gosta de viver no mundo que eles criam e não no mundo real, acho que essa é a questão de fundo", acrescenta Sobral.
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