Uma distância de 50 quilômetros separa os bairros Itaim Bibi, na Zona Oeste de São Paulo, e Marsilac , no ponto mais ao sul da capital paulista. Os dois distritos têm poucas características em comum, com exceção de ocuparem os extremos na listagem da arrecadação do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) por distrito.
Em primeiro lugar está o Itaim Bibi, bairro que arrecada R$ 841,56 milhões de IPTU em um ano. Com o dinheiro do imposto na região, por exemplo, seria possível custear mais de 1,6 milhão de cestas básicas.
Do outro lado, no fim da lista, o bairro de Marsilac, que contribuiu com pouco mais de R$ 79 mil no mesmo período, valor mais de dez mil vezes menor do que o Itaim - e bem abaixo da média de arrecadação da capital paulista, que é de R$ 94,8 milhões.
O levantamento foi divulgado pela Rede Nossa São Paulo, no Mapa da Desigualdade de 2019 . Os dados são referentes ao ano de 2018 e foram obtidos pela organização via Lei de Acesso à Informação.
Confira a arrecadação por distrito
Talvez dez mil vezes menor ainda seja pouco para revelar as angústias dos moradores de Marsilac. A sensação de quem mora por lá é de esquecimento. Os moradores nem se referem ao bairro como um distrito de São Paulo. O abismo entre as regiões é tão grande que para Luiz Eduardo Gomes, 55, presidente da Associação dos Moradores de Marsilac, “é como se fosse um outro país”.
Para chegar a essa outra São Paulo, basta seguir pela Estrada Engenheiro Marsilac, e em menos de duas horas encontrar um cenário totalmente diferente. Prédios empresariais, hospitais, escolas, bares, cinemas, shoppings e ruas pavimentadas escancaram a diferença de como a vida acontece no Itaim Bibi.
O aposentado Marco Antônio Castelo Branco, 70, fundou a Sociedade Amigos Itaim Bibi em 1997 e hoje é o presidente da organização que representa os moradores junto aos órgãos públicos. Ele é morador do bairro há mais de trinta anos e questionou o imposto ser tão caro e problemas que poderiam ser solucionados e se arrastam sem solução.
Dentre as principais problemáticas, ele destaca a ocupação irregular das calçadas por restaurantes de bares, além do barulho dos seus respectivos frequentadores. “A prefeitura de Pinheiros tem sido acionada com frequência, mas não existe fiscalização. Muitas vezes a gente precisa andar no asfalto porque a calçada está totalmente ocupada”, diz Marco Antônio.
Falta de estrutura e mortes
Ao Sul, os problemas são outros. A escassez de serviços públicos faz do local uma área de intensas necessidades. Falta saneamento básico, hospitais, escolas, água potável, energia elétrica, sinal de telefone e lazer.
Luiz Eduardo alega que só há uma escola e o investimento é pouco. Na saúde, não há hospitais por perto. Os moradores contam com o serviço da Unidade Básica de Saúde (UBS), que segundo Luiz, é paliativo.
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“Sempre tem médico na UBS, tem o dentista e alguns remédios. Mas se for uma urgência, não podemos fazer cirurgia. Se eu tiver um infarto e precisar de socorro vou ter que esperar uma ambulância percorrer muitos quilômetros até aqui. Isso se eu tiver como ligar para o socorro”, afirma Luiz, ao lamentar a falta de sinal para os telefones. O único local onde o sinal de telefone funciona é em uma praça do bairro.
Luiz denuncia que pelo atendimento precário na saúde, três pessoas já morreram . Pelas redes sociais, os quase 14 mil habitantes de Marsilac tentam reverter o cenário. Em uma página no Facebook, eles compartilham as denúncias e vitórias. Sonham com a reforma agrária na região e investem na agricultura familiar para diminuir as desigualdades.
Os moradores de Marsilac geralmente trabalham em outras regiões porque não há emprego por lá. O transporte público só chega até a praça principal, mas não leva ninguém nas regiões de mata. Quem mora distante do ponto final precisa andar em média seis quilômetros para chegar em casa.
O lazer também é escasso. Luiz condena a falta de um cinema, teatro ou centro cultural. Para ele, a única fonte de renda seria mais investimento no ecoturismo, mas o retorno financeiro não fica com os que vivem no bairro. O território é considerado patrimônio ambiental e está sob proteção desde 1975, quando foi estabelecida uma lei estadual de preservação dos mananciais. Com paisagem interiorana, ar bucólico e muita natureza, Marsilac tinha tudo para ser uma região de conforto para os moradores.
Os problemas para ter acesso à água potável são tantos que eles organizaram uma abaixo-assinado entre os moradores para cobrar providências da prefeitura. Nada foi feito. Eles sempre utilizaram os poços para a captação , mas muito secaram e outros foram contaminados. Pessoas adoeceram e a situação penosa está longe de ter fim. “Eu fico impressionado porque estamos no século 21 e passamos por isso”, lamenta.
Cansados de esperar soluções para problemas tão básicos, há sete anos, os moradores de Marsilac decidiram lutar oficialmente para que os investimentos também chegassem ao distrito. Eles criaram a associação e, desde então reivindicam constantemente melhorias e direitos garantidos pela lei.
Como o IPTU pode ajudar?
Em entrevista ao iG, o presidente da associação de Marsilac não ficou surpreso ao saber dos números do IPTU da região onde mora. “Eu acho que somos esquecidos porque a gente não contribui, não ajuda em nada nas contas da prefeitura. Mas eu sei que eles não podem fazer isso porque temos a constituição e os direitos são iguais”, afirma Luiz Gomes.
Ele não sabe, mas a legislação brasileira determina que 25% do total arrecadado do IPTU seja aplicado na Educação e outros 15% diretamente na Saúde. E a redistribuição dessa verba não deve levar em conta se região contribui mais ou menos. Pela lei, todos têm direito as melhorias.
É o que explica o consultor tributário Francisco Arrighi. “A gente sabe que não há uma distribuição da forma como deveria ser. Por exemplo, nesses bairros mal servidos com deficiência em urbanismo, esgoto sanitário e saúde, o dinheiro de retorno deveria ser maior, mesmo que eles contribuam menos. A realidade é diferente. Esse é um problema não só de São Paulo, mas do Brasil todo”.
Adriano Biava, professor de economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA/USP), destaca que o IPTU tem por principal função, do ponto de vista fiscal, financiar os serviços da prefeitura.
“E uma gestão como São Paulo que apresenta grandes disparidades deve considerar na alocação dos recursos que advém do IPTU as necessidades da população em termos dos principais serviços”, avalia.
O pesquisador salienta ainda que o IPTU enquanto eixo de gestão pública para diminuir desigualdades não é efetivo. “Alguns estudos demonstram que quando se fala da aplicação desses recursos na capital paulista o efeito redistributivo não ocorre de uma forma adequada”, explica.
Além do IPTU servir como verba para os custos da prefeitura, a ideia é que as regiões com maior poder aquisitivo paguem mais e isso seja refletido em alguns serviços para toda a população .
“É você tirar de quem pode pagar e fornecer para quem não pode. Mas ainda há um abismo porque a pressão dos outros bairros é maior. São populosos e dão voto, é um problema político que permanece”, complementa.
Em busca de Justiça
Por causa das disparidades sociais, paulistanos se uniram e criaram o Movimento IPTU Justo . Uma das premissas da organização é que o movimento trate com equidade todas as áreas da cidade, com prioridade a áreas necessitadas.
Simone Boacnin, uma das integrantes do movimento, explica que a desigualdade só vai melhorar quando a gestão da cidade for mais responsável com o dinheiro do pagador de impostos. "Passa longe o dia que realmente teremos diminuição da folha de pagamento da prefeitura que ocupa por volta de 50% do orçamento da cidade", diz.
Ela também faz críticas ao alto valor que é cobrado dos moradores. "Não é aumentando a arrecadação do dinheiro do imposto que vão resolver isso. É consertando o vazamento que acontece no caminho até ele chegar no destino final", alerta.
Para Simone, o caminho para a solução é a descentralização e participação social . "Eu sou conselheira participativa e nosso papel é fiscalização social da subprefeitura. Não tem outro jeito, se a população não for ouvida e se não tiver transparência nos cálculos, a desigualdade no mínimo vai se manter", pontua.
Procurada para esclarecer a situação do bairro de Marsilac e os investimentos feito a partir da verba do IPTU na cidade de São Paulo, a prefeitura não se manifestou até a publicação desta reportagem.
Entenda
O IPTU é um imposto pago sobre imóveis e terrenos localizados em área urbana. Sua cobrança é regulamentada pelo Artigo 156 da Constituição Federal e o valor arrecadado com a cobrança vai para os cofres da prefeitura, que o utiliza para custear despesas municipais.
Ainda de acordo com o consultor tributário Francisco Arrighi, em 2019, a legislação paulista prevê que imóveis residenciais com valor venal de até R$ 160 mil estão isentos do IPTU. “Ou seja, faz sentido que em uma região menos valorizada a verba recolhida seja menor”, diz.