POR CLÓVIS MALINVERNI
O desastre das enchentes do Rio grande do Sul já é considerado um dos maiores do Brasil no século XXI. As cheias resultaram em centenas de mortes, deixaram centenas de milhares de desabrigados, causaram colapso na infraestrutura de mais de 400 municípios, prejuízos imensos na agricultura, indústria, comércio, e turismo. É digno de nota que uma tragédia de tal dimensão tenha ocorrido em um Estado com forte tradição na defesa do meio ambiente.
Em pleno 2024, a expressão “desastres naturais” deveria causar estranhamento. Pois dá a entender que a tragédia em questão não tem qualquer relação com ações humanas. A influência humana, antropogênica, nas causas e no enfrentamento dos desastres climáticos é tão óbvia que não deveria ser objeto de disputa. Embora a ciência climática tenha lacunas e dissensos importantes, por sua natureza probabilística, os alertas do IPCC sobre eventos extremos mais frequentes e graves seguem amplamente ignorados.
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As críticas ao “alarmismo” climático frequentemente apontam as contradições em certas posturas ecologistas superficiais, a manipulação de questões ambientais por interesses econômicos transnacionais em guerras comerciais, e os interesses de potências estrangeiras nos recursos naturais brasileiros. Também mencionam a interferência internacional em assuntos internos através de ONGs.
Embora esses sejam problemas reais que merecem reflexão, a manipulação dessas questões por parte de negacionistas reduz a importância da causa ambiental, transformando-a em caricatura aos olhos de muitos. Isso faz com que alertas sérios sobre mudanças climáticas, perda de biodiversidade, poluição atmosférica, oceânica e terrestre, sejam perdidos em disputas de narrativas.
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Crise de legitimidade
Meu objetivo neste texto não é discutir os maus-tratos à legislação ambiental nos últimos anos, a falta de planejamento urbano e impermeabilização das nossas cidades (que já nascem ecologicamente inviáveis), a falta de zoneamento ambiental, os ataques legislativos ao licenciamento ambiental e outros instrumentos administrativos, nem a degradação das encostas, nascentes e matas ciliares. O ângulo proposto é abordar a crise de legitimidade das instituições político-jurídicas e sua incapacidade de enfrentar problemas graves do século.
O descaso e a ineficiência administrativa derivam de motivos econômicos, culturais, éticos, técnicos, resultando frequentemente na captura da administração pública por players cuja mal disfarçada ganância sobrepõe-se a ações no interesse coletivo ou social.
Exemplos claros da incapacidade do Estado brasileiro em prevenir desastres não faltam. Um caso emblemático é o Projeto Brasil 2040: cenários e alternativas de adaptação à mudança do clima, encomendado pela extinta Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, e concluído em 2015. Esse projeto compilou 37 documentos, e seu resumo executivo previu o aumento das vazões dos rios e a tendência de inundações na região Sul, recomendando “ações preventivas e de mitigação, no âmbito de uma lógica proativa, com vistas à redução das vulnerabilidades dos sistemas e das populações”.
O relatório também recomendou o aprimoramento nos modelos de previsão climática, incluindo a construção de cenários futuros de médio e longo prazo para orientar políticas públicas. Além disso, destacou a importância do desenvolvimento de sistemas de alerta precoce e de planos de contingência para cheias. Foi enfatizado que “as medidas a serem tomadas não podem ter um cunho reativo, ou seja, um planejamento de curto prazo apenas para administrar as urgências”. No entanto, o Programa Brasil 2040 foi abruptamente interrompido pelo governo federal em 2015 e as recomendações não saíram do papel.
Os governos posteriores não adotaram medidas conforme as recomendações mencionadas. Pelo contrário, foram marcados por retrocessos legislativos e institucionais significativos em relação ao meio ambiente. Isso culminou no autodeclarado projeto de passar a boiada, aproveitando que as atenções de todos estavam voltadas à pandemia de covid-19. O plano foi bastante exitoso ao promover desregulamentações, embora não tanto quanto pretendiam seus formuladores.
Prioridades invertidas
O orçamento público é um indicador importante das prioridades da gestão pública. Sua principal vantagem é ser objetivo, permitindo uma análise imparcial. Sob o ponto de vista orçamentário, pode-se afirmar que a questão ambiental nunca foi uma prioridade no Brasil.
A título de exemplo, no projeto que deu origem ao orçamento de 2023, a rubrica “obras emergenciais de mitigação para redução de desastres” caiu de R$ 2,8 milhões para apenas R$ 25 mil, ou seja, um corte de 99%. O orçamento de 2024 para o Ministério do Meio Ambiente (MMA) é de R$ 3,6 bilhões, ainda 16% menor que o de 2023.
Esse montante corresponde a cerca de 0,82% do valor destinado ao pagamento de juros da dívida pública, que é de R$ 436 bilhões, ou 0,06% do orçamento global da União, que é de R$ 5,4 trilhões. O Fundo Nacional de Mudança do Clima conta com a destinação de apenas R$ 5 milhões, no orçamento 2024. Esse cenário pode ser explicado, em parte, pela aprovação da emenda constitucional nº 95, conhecida como teto de gastos, recentemente transformada em novo arcabouço fiscal.
No Brasil, conhecido por manter uma das taxas de juros mais altas do mundo há décadas, o orçamento da União destinado à prevenção de desastres caiu de R$ 6,8 bilhões (em 2014) para R$ 1,4 bilhões (em 2023), subindo para R$ 2,6 bilhões, em 2024, segundo levantamento da ONG Contas Abertas disponível no Siafi.
No entanto, apenas 19% dos recursos destinados pela União para prevenção e combate a desastres foram utilizados até o dia 2 de maio. Essa ineficiência administrativa se deve em parte ao baixo número de projetos aprovados, que dependem da iniciativa das prefeituras e de deputados federais.
É necessário avaliar se a falta de utilização dos recursos se deve à falta de capacitação e apoio técnico das prefeituras ou à falta de iniciativa e interesse por parte delas. No que concerne ao Congresso Nacional, levantou-se que apenas um parlamentar destinou emendas para prevenção de desastres no RS, em 2024, mesmo diante dos alertas dados pela comunidade científica.
Descaso orçamentário com a prevenção
Após o início da tragédia, o governo estadual do Rio Grande do Sul tem sido duramente criticado pelo descaso orçamentário na prevenção de desastres, apesar de enchentes anteriores não terem sido suficientes para motivar cobranças mais fortes. Conforme matéria do GZH, o governador argumenta que as críticas não consideram diversas rubricas correspondentes a ações geridas por diferentes Secretarias. Seria necessário contabilizar despesas do Fundo Estadual de Defesa Civil; Secretaria de Segurança Pública; corpo de bombeiros; Secretaria do Meio Ambiente; e Metroplan, fundação responsável pela gestão de projetos e respostas a desastres naturais.
No entanto, ainda assim, as despesas direta e indiretamente relacionadas às enchentes representam apenas uma pequena fração da proposta orçamentária anual do estado do RS para 2024, que é de R$ 83 bilhões, sendo R$ 78 bilhões em despesas correntes. O sistema estadual de gestão integrada de riscos e desastres recebeu apenas R$ 10 mil, valor extremamente baixo em comparação com a magnitude do problema..
O município de Porto Alegre, por sua vez, destinou R$ 1,788 milhões para melhoria no sistema contra cheias no orçamento municipal de 2021, mas esse valor diminuiu drasticamente para R$ 141 mil em 2022. No ano de 2023, consta R$ 0,0 (nenhum centavo) na mesma rubrica, ainda que o Departamento Municipal de Águas e Esgotos (DMAE) opere com lucros elevados e tenha ativo circulante de R$ 428,9 milhões.
A imprensa notou que o DMAE perdeu cerca da metade dos seus servidores em dez anos (de 2049, no ano de 2013, para 1072, em 2024). Especialistas apontam falhas no sistema de comportas que poderiam ter sido evitadas com investimento ou manutenção, o que teria ajudado a mitigar ou impedir a inundação de Porto Alegre e Canoas, na região metropolitana.
As afirmações são contestadas pelo diretor adjunto do DMAE. A questão será investigada, de maneira que novas informações estarão disponíveis em breve.
A questão da dívida pública
O argumento do governo do estado de que a dívida com a União limita as ações de prevenção contra desastres aponta para uma questão relevante, embora não justifique a omissão do poder público. Assim como ocorre com outros estados da federação, a dívida do Rio Grande do Sul (que, se fosse reajustada apenas pelo IPCA, já estaria paga há pelo menos 10 anos) continua a crescer com juros extorsivos, comprometendo larga fatia do orçamento. Dinheiro que poderia ser destinado a investimentos, promovendo desenvolvimento econômico e proteção ambiental. Parodiando John Lennon, desastre climático é o que acontece com você enquanto o Estado faz outros planos.
Em 14 de maio de 2024, a presidência da República anunciou a suspensão da dívida do RS com a União por três anos, permitindo um alívio financeiro da ordem de R$ 11 bilhões em economia no pagamento de juros, que poderá ser utilizado na reconstrução do estado.
Embora esta medida seja urgente e necessária, ajuda a lembrar que a dívida é uma parte constitutiva das instituições políticas na era do capitalismo a crédito. Como destacou o sociólogo Wolfgang Streeck, a pressão do rentismo sobre o Estado atingiu proporções em que a política institucional responde hoje a dois outorgantes: o povo do Estado e o povo do mercado.
O interesse público na gestão de riscos de catástrofes está relacionado com o primeiro grupo, ou seja, aos cidadãos detentores de direitos, que se relacionam com o Estado com base em princípios da lealdade. Esse povo do Estado manifesta sua aprovação ou desaprovação periodicamente, por meio das eleições, ou cotidianamente, enquanto opinião pública, demandando serviços públicos como contrapartida a impostos pagos.
No entanto, a maior parte do orçamento público é direcionada para um segundo grupo soberano, o povo do mercado, formado por investidores com demandas específicas. Os credores do Estado se relacionam com o governo segundo o princípio da confiança (do mercado, dos investidores) e manifestam sua aprovação ou desaprovação por meio da compra e venda de títulos da dívida pública no mercado de dívidas soberanas, demandando a remuneração do serviço da dívida.
O ministro da economia dirigiu-se a esse segundo grupo ao esclarecer que, dos R$12 bilhões em auxílios previstos na medida provisória encaminhada ao Congresso Nacional para auxiliar o Rio Grande do Sul, pelo menos 7 bilhões seriam destinados a subsídio ao crédito. O objetivo é acalmar o mercado: os subsídios serão pagos com correção e juros, ainda que abaixo da taxa média praticada pelo mercado.
Assim, os cidadãos acabam pagando sua dívida, contraída pela omissão do Estado, beneficiando, em última instância, os investidores. Afinal, quem mandou ficarem no caminho da chuva? Por outro lado, é fundamental que a dívida pública seja impagável, já que a remuneração dos investidores se dá, sobretudo, por meio da cobrança de juros.
É importante notar que a prevenção e o controle de desastres sequer foram temas enfrentados pelas três esferas de poder (governo federal, governo do Rio Grande do Sul e prefeitura de Porto Alegre) em suas plataformas submetidas ao Tribunal Superior Eleitoral durante as últimas campanhas eleitorais.
Ao menos por enquanto, o Estado de direito não se sente em dívida para com os cidadãos, em matéria de prevenção de eventos extremos. A ambiguidade da palavra dívida não é casual, já que se trata de uma excelente chave de explicação das relações de poder e violência nos últimos 5 mil anos.
Ausência histórica de planejamento
A prevenção de impactos ambientais, em geral, e de desastres climáticos, em particular, nunca teve espaço, no Brasil. Além de estar voltada ao curto prazo, nossa cultura institucional é permeada por elementos de clientelismo e corporativismo, priorizando grupos de interesse em detrimento do bem comum. Se algumas das questões sociais mais evidentes nunca foram adequadamente enfrentadas, que dirá assuntos de alta complexidade técnica, em que as ciências têm muito a dizer, porém não têm – nem poderiam ter – respostas definitivas.
A política do futuro, se houver futuro, deverá ser preventiva e precaucional, adotando uma política de gestão de riscos baseada em evidências plausíveis e orientada para antecipar problemas. A racionalidade ambiental requer a compreensão da complexidade que marca a relação natureza-sociedade, projetando diálogo de saberes e soluções de longo prazo.
Soluções que sejam socialmente justas e capazes de prever e mitigar impactos: para isso, é necessário um comprometimento institucional claro, objetivamente expresso em políticas, projetos e ações de curto e longo prazo. No entanto, pouco poderá ser feito sem um despertar da cidadania para a importância da justiça ecológica e das mudanças climáticas. Quantas tragédias serão necessárias para isso acontecer?
Clóvis Malinverni – Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professor adjunto na Universidade de Caxias do Sul (UCS).
Este texto foi republicado de The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original.
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