Está esquentando o assunto das “bets”. Em matéria da Folha de 13/07 (Apostadores deixam de comer pizza e ir ao cinema e até adiam compra de cama para gastar com bets), uma pesquisa da SBVC (Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo) revela que o dinheiro gasto nas apostas esportivas está avançando sobre outros itens da cesta de consumo dos brasileiros, principalmente dos mais jovens. O Santander estima que as bets ocupam, hoje, cerca de 2,7% da renda familiar, contra 1,9% há 5 anos.
Alguém poderia pensar: “mas trata-se de um jogo soma zero. Se alguém perde, alguém está ganhando, de modo que a renda total não se altera”. Sim, isso seria verdade se as plataformas operassem de graça. Não é assim, como sabemos. A banca sempre ganha. No caso, segundo a reportagem, ganha R$ 14 bilhões ao ano, em um fluxo de apostas de R$ 110 bilhões/ano. Ou seja, as plataformas faturam 12,7% de tudo o que é apostado no país. Isso significa que, se você apostar um número suficientemente grande de vezes, sairá 12,7% mais pobre depois desse processo.
A Anbima (Associação Brasileiras das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais) realiza anualmente uma pesquisa para identificar as características do investidor brasileiro. Em sua edição mais recente, o Raio X do Investidor Brasileiro identificou que 14% dos brasileiros usam apps de apostas regularmente. Desses, 22% consideram as “bets” como uma espécie de investimento financeiro. Portanto, 3% de nossos compatriotas consideram as apostas esportivas como um investimento.
Antes de condenar a ignorância desses brasileiros, responda rápido: o que diferencia investimentos de apostas?
Investimos com um objetivo muito claro: obter mais dinheiro do que colocamos. Nesse sentido, qualquer mecanismo que permita esse resultado poderia ser considerado um “investimento”. As apostas esportivas, assim como a Mega-Sena e os cassinos, se encaixam nessa categoria.
Já posso ouvir as vozes de protesto. Como comparar a nobre ciência/arte do investimento com jogos de azar? Afinal, investir supõe análise e estudo profundos, de modo a identificar as alternativas com as melhores perspectivas futuras. Muito diferente de apostar preto ou vermelho em uma roleta. Ok, justo.
Mas e as apostas esportivas? Os apostadores também podem reivindicar a mesma análise e estudo para realizar as suas escolhas. Conheço pessoalmente um apostador que mantém uma planilha sofisticada com os resultados e outros dados de jogos de vários anos, de modo a subsidiar, com informações, as suas apostas. Ou seriam investimentos?
Então, a diferenciação pelo esforço de análise do objeto do investimento não é suficiente para distinguir as apostas esportivas dos investimentos tradicionais.
Outra tentativa é ligar investimentos à análise macroeconômica. Nesse caso, as apostas esportivas estariam fora desse escopo, mas também estariam as criptomoedas, as obras de arte e os cavalos de corrida, por exemplo, que são considerados “investimentos”. Claro que os investidores nesses ativos dirão que, de alguma forma indireta, os fundamentos macroeconômicos influenciam os seus preços. Mas trata-se de uma influência tão distante quanto a que é exercida sobre os jogos de futebol.
Uma terceira tentativa de distinção é afirmar que investimos sempre em ativos: compramos algo hoje para tentar vendê-lo no futuro a um preço maior. Nas apostas esportivas faltaria esse objeto concreto, que serve como lastro para o investimento. Neste caso, estaríamos descartando como investimentos toda sorte de contratos derivativos. Um derivativo não é um ativo, mas sim um contrato cujo preço varia de acordo com o preço de um ativo subjacente. Uma aposta esportiva é a mesma coisa: trata-se de um contrato cujo preço é determinado por um ativo subjacente, o resultado de um jogo de futebol. Ok, o resultado de um jogo não é um ativo em si, mas também não são ativos em si as taxas de juros ou de câmbio, e nem por isso os seus derivativos não são considerados como investimentos. Os derivativos de juros e câmbio permiteminvestir sem o envolvimento de qualquer ativo concreto, como um título de dívida, por exemplo.
Então, como ficamos? Seriam as apostas esportivas, afinal, investimentos? Se a resposta for positiva, podemos afirmar, portanto, que os investimentos não passam de apostas sofisticadas? O mercado financeiro seria, portanto, um grande mercado de apostas?
Esta é uma questão que parece um mero jogo de palavras, mas somente na superfície. Por debaixo, temos um conceito sólido e, ao mesmo tempo, provocativo: a eficiência (ou não) dos mercados. A hipótese de eficiência dos mercados afirma que todas as informações públicas já estão incorporadas nos preços dos ativos. Assim, ter informações públicas não significaria ter alguma vantagem sobre outros competidores no mercado, por melhor que seja a capacidade de análise. E como novas informações chegam de forma aleatória, os movimentos dos preços também se dariam de maneira aleatória, reagindo a essas novas informações. É o tal “passeio aleatório” dos preços.
A palavra aleatória aqui é importante, e aproxima os investimentos das apostas esportivas. Em ambos os casos, prever o futuro é um exercício fútil, dado que se trata de algo aleatório e, portanto, imprevisível por natureza. Os defensores da hipótese da eficiência dos mercados afirmam que ninguém consegue bater o mercado de maneira consistente ao longo do tempo. É a versão acadêmica do “a banca sempre ganha”. No caso do mercado financeiro, a “banca” é formada por todos os profissionais que cobram alguma coisa para que os apostadores, quer dizer, os investidores, façam as suas apostas, quer dizer, os seus investimentos.
Só há uma forma de escapar desse incômodo paralelo: mudar o foco dos investimentos para o investidor. O investidor não é aquele que compra um ativo hoje para vendê-lo no futuro por um preço maior. Este é o apostador. O investidor é aquele que analisa as suas próprias necessidades financeiras e escolhe os investimentos de acordo com essas necessidades. Esta mudança de foco, que parece sutil, na verdade é copernicana. O investidor passa a ser o centro do universo, e não mais os investimentos. Não se trata mais de pular de investimento em investimento, procurando sempre aquele que “vai render mais”, mas de estabelecer metas de acordo com as próprias necessidades e tolerância a risco, e montar um portfólio de acordo com essas metas.
Um exemplo simples ilustrará a diferença de abordagem. Digamos que você vai viajar para o exterior, e precisa comprar dólares. O apostador fica aflito, procurando o “melhor momento” para fazer a operação. Lê sofregamente análises e mais análises, buscando a iluminação. E, depois de comprar, continua acompanhando as cotações da moeda, parabenizando-se ou autoflagelando-se pela escolha feita. Já o investidor comprará os dólares necessários para a sua viagem, porque é isso que precisa ser feito. Aquele dinheiro gasto na compra entra no seu orçamento de viagem, e pronto, vida que segue. O investimento nos dólares serviu ao seu objetivo.
Talvez a melhor forma de diferenciar investimento de aposta seja justamente isso: quando o investimento é encarado como investimento, o resultado é paz de espírito. Por outro lado, quando o investimento é encarado como aposta, gera medo ou euforia.
E você, investe ou aposta?
** Marcelo Guterman é engenheiro de produção pela Escola Politécnica da USP e Mestre em Economia e Finanças pelo Insper. Possui o certificado CFA – Chartered Financial Analyst. Ministrou vários cursos de finanças ao longo dos últimos 35 anos, incluindo Gestão de Investimentos no programa do MBA de Finanças do Insper. Atuou em várias multinacionais de administração de fundos de investimento nas últimas décadas, como gestor de recursos e especialista de investimentos. É autor dos livros “Finanças do Lar” e “Descomplicando o Economês".