João Ricardo Costa Filho

Jamaica muito abaixo de zero

Lições para a sustentabilidade fiscal no Brasil

Foto: FreePik
Encontrando equilíbrio entre crescimento econômico e responsabilidade social


sustentabilidade fiscal tem ganhado destaque nas discussões sobre a economia brasileira, ainda que questões sobre a condução da política monetária e riscos geopolíticos disputem espaço no noticiário. Se mesmo antes da pandemia já era difícil equacionar a dinâmica das contas públicas, não era de se esperar um cenário menos desafiador no pós-pandemia. Assim como era correto responder tempestiva e energicamente ao desastre socioeconômico que a Covid trouxe, também se faz importante discutir como pagar a conta.

Em um mundo de países (muito) mais endividados, como realizar ajuste fiscal sem prejuízo social? Essa combinação é possível ou apenas um desejo descolado da realidade? Como ajustes fiscais de grande magnitude não são muito frequentes, pode-se imaginar que não exista outra saída: devemos agora nos acostumar com esse novo patamar de endividamento. Será?

Alguma esperança pode vir da experiência jamaicana. Com base nos dados para a dívida bruta do governo geral da Jamaica, disponíveis na World Economic Outlook Database (Outubro de 2023) , calculei a variação (em pontos percentuais do PIB) desde 2009 (o pico do endividamento) e o resultado é impressionante: em 2024, a redução acumulada será da ordem de 73.5 pontos percentuais do PIB, de acordo com as projeções do FMI! Como será que essa redução foi obtida?

Foto: Gráfico
Variação da dívida bruta


O trabalho de Serkan Arslanalp, Barry Eichengreen e Peter Blair Henry – intitulado  Sustained Debt Reduction: The Jamaica Exception – ajuda a compreender o caso jamaicano. Mesmo com todas as vulnerabilidades (à vulcões, enchentes, secas, terremotos, etc), como nos lembram os autores, e mesmo após a pandemia da Covid, o país consegui manter o curso da redução do endividamento.

O que foi necessário para a consolidação fiscal? Arslanalp Eichengreen e Henry elencam dois pilares: primeiro, regras fiscais que destacavam o problema da dívida alta e encorajavam um plano de endividamento de médio prazo, sem espaço para fugir da rota. Mas as regras por si só nem sempre são suficientes para garantir a redução da dívida. É preciso que os políticos eleitos as cumpram. Esse foi considerado o segundo pilar. Em um ambiente de limitada instabilidade política e polarização (e violência) reduzida(s), diálogo facilitado, houve um entendimento dos diferentes agentes da sociedade sobre a necessidade de realizar uma consolidação fiscal em um país que chegou a registrar uma dívida bruta de mais de 140% do PIB.

Governo, mercado financeiro, famílias, empresas não-financeiras, enfim, muitos grupos precisaram entender o concordar com o plano. Mas uma dúvida pode naturalmente emergir: será que com uma redução no endividamento dessa magnitude o impacto na economia em termos de atividade econômica, de emprego, não foi muito profundo? Não parece o caso. Em uma análise simplória, com base nos dados da mesma fonte citada no começo do texto, eu fiz quatro gráficos. Podemos observar neles que a taxa de desemprego começa uma tendência de queda em 2013, justamente o ano em que a consolidação se inicia (veja o gráfico ao lado com o nível da dívida bruta do governo geral). A inflação manteve-se controlada no período, sem considerar o pico em 2022, que foi rapidamente equacionado.

Foto: Dados: WEO, FMI
Gráfico


Outra dúvida natural sobre como replicar o sucesso jamaicano pode ser: será que isso só não pôde ser feito porque o país registrava altas taxas de crescimento econômico? Afinal, se o PIB crescer mais do que a dívida, mesmo com aumento do endividamento, a razão dívida/PIB diminui. Não é o que observamos no último dos quatro gráficos acima, aquele que apresenta as taxas de crescimento do PIB do país ano-a-ano. O desempenho econômico jamaicano não foi lá formidável, muito longe disso. Entre 2013 e 2024, considerando as projeções feitas pelo FMI, a média de crescimento terá sido em torno de 0,85% ao ano. Ou seja, não foi pela atividade pujante que eles conseguiram diminuir a dívida, mas sim pela economia feita pelo governo por meio de uma combinação de aumento de impostos e corte de gastos.

Um último pilar importante é entender se o ajuste foi feito de maneira a piorar a distribuição de renda. Em outras palavras, se lá, assim como sistematicamente fazemos no Brasil, o ajuste foi feito em cima dos mais vulneráveis, os mais pobres, deixando grupos privilegiados protegidos e sem arcar com a sua parcela no ajuste. Os dados da versão 9.6 da  The Standardized World Income Inequality Database não parecem corroborar com essa hipótese.

Em que pese termos dados apenas até 2017, a desigualdade (medida pelo Índice de Gini considerando a renda disponível) diminuiu no período. Claro, existem as usuais ressalvas por esse tipo de indicador não contemplar todo o tipo de renda. De qualquer forma, o comportamento dessa métrica de desigualdade apenas reforça que o caso jamaicano é, sem dúvida, interessante e deve ser mais estudado.

Foto: The Standardized World Income Inequality Database
Desigualdade de renda na Jamaica


Obviamente, assim como os próprios autores se preocupam em deixar claro, não podemos tomar a Jamaica como um caso ser “exportado” literalmente para qualquer outro país. Dificilmente as coisas são tão simples assim. Mas o ponto aqui é: (i) compreender que é possível ter sustentabilidade fiscal com responsabilidade social e (ii) identificar quais as lições que possam ser implementadas no Brasil. Precisamos escapar de um debate que teima em repousar entre os extremos (negacionismos ou soluções fáceis) e encarar o problema fiscal como se deve: como um país que compreende a responsabilidade para com as gerações atuais e futuras e que poderia estar em uma trajetória de crescimento econômico e desenvolvimento muito mais benigna se fizesse, sistematicamente, a lição de casa. Dá trabalho, mas é possível.