João Ricardo Costa Filho

A Argentina não deveria deixar o café esfriar

Os governantes perdem a noção do tempo e ficam presos em erros do passado

Foto: Foto: Luciano Rocha
A Argentina não deveria deixar o café esfriar


Com o resultado da eleição na Argentina , a dúvida que surge agora é sobre como o novo governo, empossado no último domingo, irá conduzir a política econômica em uma situação tão desafiadora para o país. Em que pese um conjunto de medidas com o objetivo de realizar preços ter sido anunciado ontem, as incertezas estão tanto na capacidade do novo governo em mobilizar capital político para implementar a sua agenda de reformas. As mudanças que podem alterar estruturalmente a economia terão que passar pelo Congresso. Isso implica em necessitar de habilidade e capital político, dado o grande número de articulações e composições que terá (e já teve) que fazer, já que no poder legislativo, à partida, o número de apoiadores é pequeno.


A situação é tão preocupante que eu poderia preencher todo este artigo apenas com uma lista de itens que revelam os problemas no país do ponto de vista macroeconômico. Não pretendo entediá-los com isso, no entanto. Elenco aqui apenas alguns pontos que ilustram a situação que foi cuidadosamente construída após uma sucessão de erros de política econômica ao longo de décadas: (i) taxa de inflação altíssima (para se ter uma ideia, em outubro, de acordo com dados do Banco Central de la República Argentina, a inflação acumulada em 12 meses foi de 142,7% e a expectativa mediana para os próximos 12 meses era de 195,6%); (ii) pobreza expressiva (dados do Instituto Nacional de Estadística y Censos da Argentina para o primeiro semestre de 2023 revelam que 40,1% está abaixo da linha da pobreza); (iii) escassez de divisas (no dia 5 de dezembro o banco central do país registrou apenas 21,3 bilhões de dólares em reservas internacionais; se descontarmos as obrigações em moeda estrangeira, o resultado líquido negativo!), (iv) contas públicas em trajetória insustentável (para ilustrar: a dívida pública aumentou mais de cinquenta (!) pontos percentuais em relação ao PIB entre 2011 e 2023 e desde 2008 o resultado do governo é negativo, de acordo com dados do FMI).

Como já abordei em coluna anterior , a América Latina tem se mostrado um laboratório de más práticas no que tange as escolhas que influenciam a produtividade da economia, elemento fundamental para sustentar o crescimento econômico de longo prazo, e a Argentina não foge à regra. Aliás, o nível da produtividade do país caiu 22% entre 1954 e 2019, com base nas estimativas divulgadas pelo Federal Reserve Economic Data.

No delicioso livro “Antes que o café esfrie” (alerta de spoiler nas linhas que seguem), visitantes de um café pouco usual têm a possibilidade de retornar ao passado, em uma data e horário escolhidos, desde que sigam uma série de regras. A mais importante delas: regressar ao presente antes que o café esfrie. O livro gira em torno de histórias daqueles que (lá vem outro pequeno spoiler), mesmo sabendo que a visita ao passado não tem o poder de mudar o presente, não importa o que aconteça nessa volta, ainda sim escolhem por reencontrar alguma pessoa especial que já tenha frequentado aquele misterioso café.

Pois bem, revisitar o passado é sempre oportuno e importante, especialmente para governos que se iniciam. Identificar o que deu certo e o que deve ser evitado é fundamental. Do ponto de vista macroeconômico, considero que a péssima gestão fiscal é um dos principais pilares do desastre argentino. Não fica só aí, claro. Há toda uma estrutura institucional que aloca mal os recursos, cria regras que prejudicam a população em favorecimento de grupos de interesse e a conta vem, sistematicamente, como aumento da inflação, algo que dói mais do que proporcionalmente naqueles que são mais pobres. Para reverter o quadro, o país precisa de um “Plano Real” ajustado à realidade do país. Escrevi as linhas gerais de uma  proposta aqui há alguns anos.

Nesses exercícios de “volta ao passado”, os governantes argentinos durante vários períodos se mostraram encantados com as escolhas de outras épocas. É como se eles estivem no café do livro e, ao sentarem na cadeira que os conduz ao passado, eles escolhessem as datas dos começos dos erros, onde a confiança e as expectativas dos agentes ainda não incorporaram os desastres que se seguiriam. Caso escolhessem voltar para “o dia depois do amanhã” de cada uma das tentativas frustradas de influenciar a economia com controle de preços, má-qualidade nos gastos e conjunto de regras que dificultam a vida dos argentinos, acredito que a história poderia ser diferente. Ao invés de uma história marcada por crises e calotes sucessivos e uma trajetória de “reversão” de desenvolvimento que é difícil de explicar (mas não de entender), afinal, do ponto de vista material, o PIB per capita da Argentina já esteve entre os maiores do mundo no final do século 19 e começo do século 20, poderíamos ter visto, em algum momento, o país voltar a aproveitar todo o seu potencial e proporcionar aos argentinos uma qualidade de vida muito superior. Impressionante o que fizeram com o país!

E porque voltar antes que o café esfrie? (Aqui o aviso de mais um pequeno spoiler).

Porque ao descumprir essa regra, o viajante do tempo ficará preso para sempre, sem conseguir retornar ao presente e à sua vida. Parece que é isso que ocorre na Argentina: os governantes perdem a noção do tempo, deixam o café esfriar, ficam presos em erros do passado.

Não dá mais para acreditar que desrespeitar as restrições macroeconômicas é possível. A economia sempre impera e o ajuste vem. Quando as escolhas são na direção errada, ele acontece em forma de aumento de inflação e pobreza, ou seja, conta paga pelos mais vulneráveis. E quanto mais tempo demora, mais difícil é conseguir “arrumar a casa”. Por isso, os ajustes da dinâmica fiscal do país vão cobrar uma conta cara e que não será trivial equacionar. A gestão macroeconômica precisará ser responsável e inclusiva. A qualidade do ajuste é tão importante quanto a direção. Não adianta colocar a conta do ajuste nos mais pobres. Aumento de pobreza implica que os efeitos recessivos dos ajustes fiscais são maiores (veja o trabalho “Fiscal multipliers in the 21st century”   ["Multiplicadores fiscais no século 21", em tradução livre] publicado por Pedro Brinca, Hans A. Holter, Per Krusell e Laurence Malafry) e, portanto, o desenho precisa considerar isso. Escolhas duras devem ser feitas e elas trarão pressão da sociedade. É possível equacionar, mas dará trabalho. É muito mais fácil deixar o café esfriar e reviver eternamente as escolhas do passado. Mas, assim como no livro, isso não vai mudar o presente. Para mudar, tem que fazer diferente.