Dano sofrido por cliente com deficiência e responsabilidade de companhias aéreas
Entenda a obrigação dessas empresas de criar um ambiente digno para todos os consumidores
No último dia 03 de dezembro comemorou-se o Dia Internacional da Pessoa com Deficiência , data esta que nos serve para um momento de reflexão. Não é de hoje que notamos a imensa dificuldade que pessoas com alguma deficiência possuem para realizar atos simples da vida cotidiana. Ir ao restaurante, fazer compras em um supermercado ou tomar um ônibus , na maioria das vezes (quando não na totalidade), torna-se um ato de sofrimento e bravura, vez que as condições de acessibilidade estão longe das ideais.
Detectar e reconhecer o problema não é o suficiente, é necessário agir. Por essa razão, sempre que possível, espaços públicos e privados devem buscar adaptar-se às regras de acessibilidade , propiciando que parcela significativa da população possa desenvolver suas potencialidades e viver dignamente. Na busca da garantia da plena inclusão das pessoas com deficiência na sociedade, o ordenamento jurídico brasileiro e mundial têm elaborado tratados internacionais, leis e demais atos normativos que buscam dar efetividade na integração das pessoas com deficiência à comunidade.
Nesse sentido, decidimos analisar o julgado contido no REsp 1.611.915-RS, relatado pelo Min. Marco Buzzi , em 06/12/2018 (Info 642), no qual reconheceu a responsabilidade objetiva e solidária de companhias aéreas e operadores aeroportuários por não promoverem as condições de acessibilidade de consumidor cadeirante no interior da aeronave. Em suma, assim decidiu o STJ:
“Companhia aérea é civilmente responsável por não promover condições dignas de acessibilidade de pessoa cadeirante no interior da aeronave. A sociedade empresária atuante no ramo de aviação civil possui a obrigação de providenciar a acessibilidade do cadeirante no processo de embarque quando indisponível ponte de conexão ao terminar aeroportuário (finger). Se não houver meio adequado (com segurança e dignidade) para o acesso do cadeirante ao interior da aeronave, isso configura defeito na prestação de serviço, ensejando responsabilização por danos morais”.
A decisão supra diz respeito ao caso de um consumidor com deficiência motora que adquiriu uma passagem aérea de Porto Alegre para Brasília. Ao tentar embarcar, surpreendeu-se com a absoluta impossibilidade de adentrar ao interior da aeronave, posto que a ponte de embarque estava indisponível e não havia outros meios que resolvessem o problema, tais como ambulift ou rampa móvel. Diante de tais circunstâncias, os funcionários da companhia aérea tiveram que carregá-lo nos braços, causando situação de insegurança e embaraço.
Após o ocorrido, o consumidor ingressou com ação reparatória por danos morais em face da empresa aérea. Por seu turno, a empresa apresentou contestação alegando que o defeito nos aparelhos de embarque se deveu a culpa exclusivamente de terceiros (art. 14, § 3º, II, CDC), imputando à INFRAERO (empresa pública federal responsável pela administração do aeroporto) o dever de disponibilizar os meios hábeis de acesso de passageiros ao avião.
Como vimos, o STJ deu ganho de causa à demanda do consumidor, concretizando não apenas os direitos trazidos pelo Código de Defesa do Consumidor, como também por outros diplomas legais relativos à proteção das pessoas com deficiência. De forma geral, citamos a L. 10.098/00 (regulamentada pelo Dec. nº 5.296/04), editada para dar fiel cumprimento à Convenção Interamericana sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra Pessoas com Deficiência (1999), como o primeiro dispositivo legal de efetiva defesa dos interesses dos consumidores com deficiência, tanto que, em seu art. 44, assim dispôs sobre a acessibilidade no transporte coletivo aéreo:
Art. 44. No prazo de até trinta e seis meses, a contar da data da publicação deste Decreto, os serviços de transporte coletivo aéreo e os equipamentos de acesso às aeronaves estarão acessíveis e disponíveis para serem operados de forma a garantir o seu uso por pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida.
Parágrafo Único. A acessibilidade nos serviços de transporte coletivo aéreo obedecerá ao disposto na Norma de Serviço de Instrução da Aviação Civil NOSER/IAC – 2508-0796, de 1º de novembro de 1995, expedida pelo Departamento de Aviação Civil do Comando da Aeronáutica , e nas normas técnicas de acessibilidade da ABNT.
Todavia, a principal norma que versa sobre o direito das pessoas com deficiência no Direito brasileiro está contida na Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência – Convenção de Nova York, promulgada pelo Dec. nº 6.949/09, que adentrou ao ordenamento jurídico pátrio como norma constitucional, vez que se trata de tratado internacional sobre direitos humanos ratificado pelas duas casas do Congresso Nacional, por 3/5 de seus membros, em dois turnos (art. 5º, § 3º, CF).
Tal convenção apresenta como pilares básicos o afastamento de qualquer forma de discriminação contra a pessoa com deficiência, destacando o dever de adequação dos meios para sua concretização, permitindo a independência do indivíduo na realização de tarefas do dia a dia. Já no plano infralegal, o art. 20, § 5º, da Res. nº 280/13 da ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil), veda o carregamento manual do passageiro, assim dispondo sobre o tema.
Art. 20. O embarque e o desembarque do PNAE que dependa de assistência do tipo STRC, WCHS ou WCHC devem ser realizados preferencialmente por pontes de embarque, podendo também ser realizado por equipamento de ascenso e descenso ou rampa
§ 1º. O equipamento de ascendo, descendo ou rampa previstos no Caput devem ser disponibilizados e operados pelo operador aeroportuário, podendo ser cobrado preço específico dos operadores aéreos.
§ 4º Excetua-se do previsto no caput o embarque ou desembarque de PNAE em aeronaves cuja altura máxima da parte inferior do vão da porta de acesso à cabine de passageiros em relação ao solo não exceda 1,60 m (um metro e sessenta centímetros).
§ 5º. Nos casos especificados no § 4º deste artigo, o embarque ou desembarque do PNAE podem ser realizados por outros meios, desde que garantidas suas segurança e dignidade, sendo vedado carregar manualmente o passageiro, exceto nas situações que exijam a evacuação de emergência da aeronave.
Em que pese o disposto no § 1º, da Res. nº 280/13, que obriga o b a disponibilizar equipamento de embarque e desembarque de pessoa com deficiência, o STJ aplicou ao caso o art. 14, CDC, estendendo a responsabilidade para a companhia aérea, vez que é parte integrante da cadeia de fornecimento de serviço.
No que tange ao caso concreto, entendeu o STJ tratar-se de fato do serviço (defeito), vez que o consumidor sofreu gravame que vai além da esfera econômica, tendo sua integridade física e psíquica sofrido abalo em virtude da situação vergonhosa a que foi exposto. Desta maneira, a responsabilidade civil dos causadores do dano é objetiva, independe de dolo ou culpa, bastando ao autor da ação comprovar o dano sofrido e o nexo de causalidade.
Por fim, há que se dizer que a alegação da companhia aérea de isenção de responsabilidade por culpa de terceiro não deve (como não foi) prosperar. Exclui-se a responsabilidade do fornecedor quando o fato for inevitável, imprevisível e não tiver nenhuma relação com a atividade econômica desenvolvida. Em razão do grande afluxo de pessoas com deficiência que se deslocam por avião todos os dias, a empresa não pode alegar como escusa ter sido surpreendida com a situação.
O fato além de previsível é totalmente evitável e está absolutamente conexo com a natureza do serviço prestado pela companhia, reforçando, assim, em sua responsabilidade solidária no dever de indenizar.