
A prática de guardar dólares em casa, popularmente chamada de manter dinheiro “embaixo do colchão”, tornou-se parte do cotidiano de milhões de argentinos ao longo de décadas de instabilidade econômica .
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Mais do que um hábito financeiro, essa conduta reflete uma adaptação coletiva a sucessivas crises que corroeram a confiança da população no peso e nas instituições bancárias do país.
A relação dos argentinos com o dólar se consolidou após a crise de 2001, quando o governo restringiu o saque de depósitos bancários por meio do chamado corralito. A medida, adotada durante o governo de Fernando de la Rúa, bloqueou contas em dólares e provocou protestos em todo o país.
Com o fim da paridade entre o peso e o dólar, o valor da moeda local despencou, a pobreza aumentou e a desconfiança no sistema financeiro se intensificou. Desde então, muitos passaram a guardar dólares em casa como forma de garantir acesso imediato a suas economias.
O historiador, professor e especialista em Relações Internacionais Marcelo Alves explica que a medida de 2001 foi decisiva para moldar o comportamento financeiro da população.
“O corralito representou uma ruptura de confiança. Quando o governo impediu que os cidadãos retirassem seus próprios dólares, criou-se uma memória coletiva de vulnerabilidade bancária que permanece até hoje” , afirma ao Portal iG.
Essa desconfiança, porém, não se iniciou naquele episódio. Desde os anos 1980, a Argentina enfrenta ciclos de hiperinflação e desvalorizações sucessivas. As taxas chegaram a ultrapassar 20.000% ao ano no fim daquela década, corroendo o poder de compra e o valor do peso.
Em 2023, a inflação anual superou 140%, reforçando a percepção de que a moeda local não oferece estabilidade de longo prazo.
“O peso argentino foi marcado por desvalorizações tão frequentes que perdeu sua função básica de reserva de valor” , observa Alves. “Nessas condições, o dólar passou a ocupar esse papel simbólico e prático, tornando-se referência de segurança financeira.”
Políticas cambiais
A preferência pela moeda americana é também resultado de políticas cambiais restritivas. O governo argentino, em diversas ocasiões, impôs controles sobre a compra de dólares — conhecidos como cepo cambiário —, limitando o acesso legal à moeda e ampliando o mercado paralelo.
Essa escassez oficial contribuiu para que muitos optassem por manter reservas pessoais fora do sistema bancário, guardando notas físicas.
O hábito de poupar em dólares ganhou, assim, contornos culturais. Mesmo sem oferecer rendimento, o metal verde é visto como uma forma direta de proteger o poder de compra.
A expressão “embaixo do colchão” se tornou um eufemismo para essa estratégia doméstica de preservação do valor.
“Guardar dólares em casa é uma resposta a um histórico de instabilidade e desconfiança. Mais do que uma escolha racional, é uma herança de décadas de incerteza econômica” , explica o especialista em relações internacionais.
Para muitos argentinos das classes média e baixa, a ausência de alternativas de investimento seguras reforça esse comportamento. Sem confiança em bancos, títulos públicos ou fundos locais, o dólar físico tornou-se um meio simples e acessível de poupança.
No mercado informal, a moeda é amplamente aceita, inclusive em algumas transações comerciais.
“A economia argentina aprendeu a conviver com o dólar como elemento estrutural” , avalia Alves. “Ele não é apenas uma moeda estrangeira, mas parte da vida cotidiana e da organização financeira das famílias.”
Ao longo de décadas marcadas por hiperinflação, moratórias, recessões e políticas de controle cambial, o dólar se consolidou como um refúgio particular contra as incertezas do peso e do sistema financeiro argentino — uma prática que, para muitos, continua sendo a única forma de garantir estabilidade em meio a crises recorrentes.