Decreto do mínimo existencial benefica bancos, diz Idec
Especialistas criticam inversão de lógica
O presidente Jair Bolsonaro editou decreto que dispõe sobre o chamado "mínimo existencial", mecanismo criado pela Lei do Superendividamento, sancionada e incluída no Código de Defesa do Consumidor (CDC) há um ano. Pela norma, o valor mínimo existencial será de 25% do salário mínimo vigente, hoje R$ 303 . De acordo com o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), essa decisão faz com que bancos e financeiras possam utilizar quase toda a renda do consumidor para o pagamento de dívidas e juros, sobrando apenas R$ 303 para que as pessoas possam utilizar com alimentação, aluguel e demais gastos essenciais. O decreto entra em vigor em 60 dias.
"O governo criou a lei há um ano e agora define o mínimo existencial de 25% com base no salário mínimo vigente que equivale R$ 303, valor inferior ao valor médio do Auxilio Brasil. Ou seja, praticamente concede aos bancos a gestão de 75% da renda do consumidor", afirma Ione Amorim, coordenadora do Programa de Serviços Financeiros do Idec.
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O Idec é contra o valor determinado como mínimo existencial, pois a decisão não leva em consideração a realidade atual da população brasileira. Até mesmo o recente aumento no valor do Auxílio Brasil fica prejudicado com o novo decreto, já que a população endividada no Brasil chega a 77% das famílias e muitas delas têm como renda única o programa social.
"Uma parcela significativa do endividamento das famílias ocorre pelo uso de crédito para suprir o pagamento de despesas correntes e garantir a própria sobrevivência. Nesses casos, a relação renda e crédito se complementa para garantir a sobrevivência. Porém o pagamento de parcelas futuras acrescidas de juros acabam comprometendo ainda mais a disponibilidade de renda e alimenta um ciclo contínuo de uso de crédito", afirma Ione.
"É uma temeridade o governo federal criar um decreto que permita aos bancos comprometer a renda em até 75%, mesmo para aqueles que ganham apenas um salário mínimo. Como o brasileiro em geral não tem uma cultura previdente e educação financeira, a intervenção do Estado seria importante para evitar o superendividamento em larga escala, principalmente entre os mais vulneráveis da pirâmide financeira", avalia o advogado Rômulo Saraiva.
"Antes, havia a compreensão que só deveria ficar afetada 30% da renda e deixar livre 70% para a pessoa sobreviver no final do mês. Bolsonaro inverteu essa lógica, para alegria das instituições financeiras e empresas de empréstimos", critica Saraiva.
O defensor público Eduardo Chow de Martino Tostes, coordenador do Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria, avalia que há três caminhos a seguir para tentar reverter o decreto:
"Comoção popular para revogação/modificação pelo Executivo Federal, em razão de manifesta contradição com o interesse público; sustação do decreto por Resolução do Senado Federal, em razão de exorbitar os limites da lei; ou decretação de nulidade do decreto por violar a Constituição pelo Poder Judiciário, em razão de manifesta desproporcionalidade do limite de 25% do salário mínimo fomo mínimo existencial, e da violação à dignidade humana", diz avalia o defensor público Eduardo Chow de Martino Tostes, coordenador do Núcleo de Defesa do Consumidor (Nudecon).
"Na minha visão, esse decreto tem a aptidão de tornar a Lei de Superendividamento vazia, além de autorizar, de forma inconstitucional, o vilipêndio à dignidade e à subsistência da pessoa miserável e vulnerabilizada pela oferta irresponsável do crédito, em prol somente dos bancos", finaliza.
Defensoria Pública se manifesta
O Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos Gerais (Condege), também manifestou preocupação com a realidade de mais de 44 milhões pessoas brasileiras superendividadas e apresentou algumas considerações sobre o Decreto 11.150/2022:
Em nota técnica a entidade afirma que "o mínimo existencial não se limita ao mínimo vital, isto é, ao estritamente necessário à sobrevivência, garantindo, assim, uma vida condigna à pessoa superendividada, preservando-lhe o bem-estar físico, mental e social e salvaguardando-lhe os direitos sociais à educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e infância".
E adverte que "a definição do mínimo existencial para fins de revisão e repactuação dos débitos, nos termos também do art. 6º, inciso XII e do 104-A do CDC, deve ser feita a partir da análise da realidade socioeconômica de cada pessoa superendividada".
"O regulamento publicado, entretanto, contradiz as diretrizes da norma a que é subordinado, criando, na prática, uma inadmissível e paradoxal situação de estímulo ao superendividamento e de violação de direitos dos consumidores, especialmente daqueles em situação de especial vulnerabilidade, vez que: segundo organismos internacionais, tal qual a Organização das Nações Unidas (ONU), está na linha da miséria quem sobrevive com até U$ 1,90 por dia (R$ 304,95 ao mês, no câmbio de hoje)", informa a nota técnica.
E finaliza: "O decreto, portanto, contraria o artigo 5º, inciso XXII, da Constituição Federal, e a própria lei que visa regulamentar, sendo desprovido, portanto, de validade, juridicidade e eficácia. A finalidade regulamentar, portanto, não foi devidamente cumprida, e as diversas hipóteses excludentes sobrepostas tornam inviável até mesmo a elaboração de uma equação que possa conduzir a um resultado plausível de proteção aos direitos do consumido. Ao se proceder todas as exclusões previstas, não restará qualquer proteção de renda ao consumidor, a quem restará continuar a dever e não pagar, sendo um excluído da vida econômica, justamente a mazela que a Lei 14.
Falta de embasamento
Conforme o Idec, o decreto aprovado não tem embasamento em estudos e desconsidera contribuições de setores importantes da sociedade civil feitas durante a audiência pública convocada pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) em outubro de 2021 para debater o tema, quando o Idec apontou que a eventual definição do mínimo existencial a partir de um teto fixo ocasionaria o desvio da finalidade principal da Lei do Superendividamento, tornando-a contrária à dignidade das pessoas superendividadas.
Nesse sentido, a entidade propôs que a definição do mínimo existencial deveria ocorrer por meio de um índice capaz de mensurar as principais variáveis que afetam as condições de sobrevivência das pessoas, como gastos com habitação, saúde, alimentação, transporte, educação, entre outros.
"O Idec continua trabalhando na proposta que possibilitará a avaliação do mínimo existencial e da capacidade de comprometimento de renda dos consumidores. A proposta em estudo contempla a situação individual do tomador de crédito e o seu histórico de endividamento, medidas necessárias para coibir a prática dos bancos de concessão de crédito baseada somente nas regras aprovadas, como no caso do crédito consignado que não leva em consideração o endividamento e comprometimento de renda, mas apenas a disponibilidade de margem e prazo para ser explorado", informa em nota.