Fila do Auxílio é marcada por desinformação e desespero; veja relatos
Cidadãos chegam a andar 22 km em peregrinação até posto do CadÚnico
"Eu vivo nas ruas, como vou ter comprovante de residência? Minha vida toda está nessa mochila". O resumo da situação de penúria é de Leonardo dos Santos, de 41 anos, que andou de Santa Cruz até Bangu, bairros da Zona Oeste do Rio distantes 22km, para tentar se inscrever no Cadastro Único (CadÚnico) — porta de entrada de programas sociais do governo federal — e, assim, conseguir o benefício do Auxílio Brasil . Na manhã desta sexta-feira (8), ele estava entre as mais de 200 pessoas que aguardavam atendimento no Rio Poupa Tempo de Bangu. A fila se formara ainda na noite anterior. Muitos dormiram ao relento, incluindo crianças.
O comprovante de residência é uma das exigências para a inscrição ou a atualização de dados no CadÚnico. E muitas pessoas que ali estavam sequer tinham contas de luz, assim como Leonardo.
Ele conta que perdeu o emprego há dois anos e, com isso, o casamento desabou. A mulher foi embora e levou os filhos. Sem dinheiro para o aluguel, Leonardo não tinha mais onde morar.
"Coloquei umas mudas de roupa e meus documentos na mochila e passei a viver sob as marquises. É triste depender das pessoas até para beber um copo de água. Arrumei um trabalho de pedreiro e consegui uma vaga para morar. Mas o serviço acabou, e não apareceu outro. Resultado: voltei pra rua. Não sou morador de rua, eu estou morador de rua", disse ele, com esperança de conseguir ingressar no programa social.
Na fila, com crianças
A necessidade de se inscrever no CadÚnico para ter uma renda mínima que permita alimentar os filhos fez Laziania Batista, de 24 anos, moradora do Jardim Bangu, chegar ao Rio Poupa Tempo às 19h de quinta-feira (8). Ela pôs a filha de 1 ano no colo, deu a mão à outra menina de 8 anos, e caminhou por uma hora de casa até o posto de atendimento.
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Na mochila, levou cobertores para proteger as crianças, documentos e água para enfrentar a noite fria. Um papelão serviu de cama para a família. O alimento? Veio da solidariedade de quem pernoitou na fila e dividiu o pouco que tinha. Laziania já havia estado no local na quarta-feira, mas, por falta de um comprovante de residência, não conseguiu se inscrever no CadÚnico.
"Moro em comunidade, não tenho conta de luz. Aqui (no Poupa Tempo) me falaram para pegar uma declaração de residência na associação de moradores. Voltei para casa andando com as crianças. Pedi R$ 15 emprestados para tirar o documento", explicou a jovem: "Como (o posto) está sempre cheio, vim dormir na fila para garantir que estaria entre os cem que são atendidos (diariamente) com senha.
Laziania Batista com duas crianças pequenas dormiu na calçada para garantir atendimento Foto: FABIANO ROCHA / Agência O Globo
Mensagem convoca para atualização de dados
Nem aqueles que já recebem o Auxílio Brasil escapam da fila do Rio Poupa Tempo. Muitos dos que estavam na porta da unidade na manhã desta sexta-feira receberam uma mensagem — via aplicativo Caixa Tem ou app do Auxílio Brail — informando que precisavam atualizar seus dados no CadÚnico até o dia 15 de julho, para não terem a renda básica suspensa.
Por isso, Alexandre Oliveira, de 49 anos, morador de Cosmos, na Zona Oeste, partiu para a fila do posto, mesmo tendo atualizado seus dados no CadÚnico no ano passado:
"Na mensagem dizia que eu estava há quatro anos sem atualização, mas isso não tá certo."
Ao seu lado estava Luciana Pereira, de 47, moradora de Santa Margarida, também na Zona Oeste. Desempregada desde 2019, ela queria se inscrever no CadÚnico para receber o Auxílio Brasil.
"Marquei atendimento no Cras (Centro de Referência de Assistência Social) de Inhoaíba, mas o agendamento foi feito para 15 de dezembro. Vizinhos que recebem o auxílio me avisaram que o prazo era até o dia 15 agora. Então, como marcaram para dezembro?", questionou.
Atendimento ruim
Queixas sobre mau atendimento por parte de funcionários do Rio Poupa Tempo também são comuns. Segundo relatos, os próprios trabalhadores orientam as pessoas a irem para a porta da unidade à noite, a fim de garantir uma senha para o dia seguinte.
Para evitar fura-filas e tumulto como ocorrera nos dias anteriores, Maria Aparecida Oliveira, de 54 anos de idade, moradora de Padre Miguel, improvisou senhas com a ajuda dos demais. Ela distribuiu 100 números, que bateram certinho com os que a equipe da unidade entregou aos que dormiram na fila.
"Se a gente não se ajudar, quem vai fazer isso? Acabou que deu certo e não teve briga", comemora.
Sete meses de espera
Sete vezes. Essa foi a quantidade de idas de Walace Morais da Silva, de 36 anos de idade, morador de Realengo, ao Rio Poupa Tempo. Algumas para fazer o Cadastro Único (CadÚnico) do governo federal e outras para buscar informações sobre o motivo de ainda não estar recebendo o Auxílio Brasil. A realidade de Walace é a mesma de 764,5 mil famílias - segundo dados do Ministério da Cidadania - ou 2,78 milhões, conforme a Confederação Nacional dos Municípios (CNM), que mesmo inscritas não recebem a renda básica. Ele chegou às 18h de quinta-feira.
"Estou desempregado desde o começo da pandemia, faço um bico aqui e ali para garantir o mínimo, sabe? Todas as vezes que venho a resposta é a mesma: depende do ministério (da Cidadania) a liberação do benefício e o dinheiro nunca vem", lamenta.
Sueli Silva de Oliveira, 53, de Palmares, buscou a unidade para fazer um novo cadastro. Ela chegou 20h30 do dia anterior para garantir atendimento e reclamou com o EXTRA do tratamento recebido no Rio Poupa Tempo do Bangu Shopping:
"Vim ontem e não consegui ser atendida porque eles deram somente cem números. Quando perguntei pro funcionário ele me disse que se eu quisesse ser atendida teria que dormir na calçada para segurar o lugar na fila", diz Sueli, que acrescenta: "É muito descaso com as pessoas."
Joselle Oliveira, 33, estava com o bebê de um ano de idade aguardando a distribuição de senhas. O menino, febril, chorava no colo da mãe, que foi pela primeira vez fazer o cadastro para receber a renda mínima.
"Ele amanheceu com febre, mas como pedi para minha mãe guardar meu lugar na fila vim bem cedo para apresentar os documentos para receber o Auxílio Brasil", explica.
Luciana Cecílio (37), mãe de 6 crianças, e Meirelane Souza (38), que tem 3 filhos, foram juntas para a calçada do shopping e passaram a noite enroladas em mantas por conta do frio.
"É muita humilhação, gente! Não havia necessidade de passar por isso. Por que não fizeram pelo aplicativo? Por que expor as pessoas dessa forma?", questiona Luciana.
"Nós corremos risco de morte aqui, estamos na beira de uma estrada onde os carros andam em alta velocidade, em caso de acidente, pode pegar as pessoas que estão na calçada. Sem contar a falta de segurança, não tinha uma viatura policial aqui", acrescenta Meire.
Eloah Alves, 36, de Senador Camará, na Zona Oeste, está desempregada há 4 anos e se vira como pode para sustentar os 7 filhos. Essa foi a terceira vez que ela compareceu ao Rio Poupa Tempo.
"Cheguei aqui às 20h de ontem com um dos meus filhos para me fazer companhia e dormi na calçada debaixo de frio. Eu preciso do Auxílio Brasil e recebi mensagem no aplicativo de que teria que atualizar meus dados. Não entendi o motivo, no ano passado eu já fiz o recadastramento", reclama.
Lorrane Diniz, 26, de Realengo, mãe de duas crianças, quando viu a quantidade de pessoas na calçada de madrugada e que o número improvvisado de papelão estava no número 101 pensou em desistir de fazer o CadÚnico. No entanto, conversando com as pessoas que ali estavam foi encorajada a ficar.
Amanheceu o dia e por volta de 7h30 as senhas começaram a ser distribuídas e ela pegou a última, o número 100. Uma das pessoas que estava à sua frente não era para o programa social.
"Ainda bem que ouvi o pessoal e fiquei! Agora vou poder fazer o cadastro para receber os R$ 400" comemora esperançosa.
O que diz a Secretaria Municipal de Assistência Social
Procurada, a Secretaria Municipal de Assistência Social informou que está montando postos volantes onde há maior demanda de beneficiários do Auxílio Brasil ou de interessados em se inscrever no CadÚnico. Em Bangu, por exemplo, a nova unidade foi montada próxima ao Bangu Shopping, na Praça Dr. Raimundo Paz, que fica na Rua Fonseca.
"Desde que o Bolsa Família passou a ser Auxílio Brasil, e as filas se formaram nos Cras (Centros de Referência e Assistência Social), a Assistência Social contratou mais 100 funcionários para fazer esse trabalho e equipou os Cras com computadores mais modernos para agilizar o atendimento", informou a pasta, por meio de nota.
A secretaria acrescentou ainda que, no fim de maio, 67 mil famílias na cidade do Rio estavam inscritas no CadÚnico e ainda não tinham sido incluídas pelo governo federal no Auxílio Brasil. No fim de junho, esse número subiu para 109 mil famílias.
"A demora do governo federal em ajudar as famílias vulneráveis ocorre justamente no momento de grave crise econômica e do retorno do Brasil ao mapa da fome", finalizou a secretaria.
A explicação do Rio Poupa Tempo
A coordenação do Rio Poupa Tempo admitiu que existe uma grande demanda de atendimento na unidade de Bangu para o serviço de cadastramento e atualização de dados do CadÚnico, que é oferecido pela Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos (SMASDH) da Prefeitura do Rio.
"A SMASDH também é responsável por disponibilizar as senhas diariamente. Ao todo, são 100 senhas por dia para o CadÚnico", explicou.
Sobre a denúncia quanto à postura dos funcionários, a coordenação declarou que ainda não recebeu queixas formais sobre mau atendimento, mas afirmou que vai apurar as circunstâncias.
"Vale destacar que todos os funcionários do Poupa Tempo são treinados para prestar o melhor serviço para o cidadão, de forma cordial e eficaz. Caso seja constatada alguma irregularidade nessa conduta, os responsáveis serão advertidos e punidos", finalizou.
Ministério da Cidadania não se pronunciou
Procurado, o Ministério da Cidadania ainda não se manifestou sobre as dificuldades de cadastramento e atualização de dados do CadÚnico nem sobre as medidas a serem adotadas para zera a fila do benefício, como prometido pelo governo federal.