Usar um imóvel como garantia de várias dívidas pode virar 'pesadelo'

Projeto de lei aprovado na última semana pode prejudicar famílias mais pobres

Projeto de lei pode prejudicar famílias mais pobres
Foto: shutterstock
Projeto de lei pode prejudicar famílias mais pobres

Aprovado na última quarta-feira (1º) pela Câmara dos Deputados, o projeto de lei que cria um novo marco de garantias no país pode transformar em pesadelo o que seria um novo caminho para melhorar o acesso ao crédito ao consumidor, principalmente o de baixa renda.

O alerta foi dado por especialistas ouvidos pelo GLOBO, que demonstraram preocupação com a possibilidade de um um único bem imóvel familiar passar a ser usado como garantia em operações de financiamentos diferentes, ou seja, em dois ou mais empréstimos.

O projeto foi apresentado pelo Executivo em novembro do ano passado e ainda precisa passar pelo Senado, antes de ir à sanção presidencial. Para a coordenadora do programa de serviços financeiros do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Ione Amorim, se aprovado, o texto afetará diretamente a Lei da Impenhorabilidade, que determina que uma família não pode dar em garantia o seu único bem imóvel, senão para o seu próprio financiamento.

"Isso significa que o bem imóvel, que não poderia ser tomado em nenhuma circunstância, salvo no inadimplemento do financiamento imobiliário, passa a servir de garantia na obtenção de outras modalidades de crédito, como o crédito pessoal, muitas vezes sem destinação específica, solicitado apenas para pagar outras dívidas bancárias. A proposta visa atender aos interesses das instituições financeiras, que buscam garantias para a expansão de crédito no país, vulnerabilizando ainda mais os consumidores", afirmou.

Ela enfatizou que, quando o bem é dado em garantia em mais uma operação de crédito, aumenta o risco para o consumidor, que tem maiores chances de perder a sua casa.

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Do ponto de vista econômico, completou Ione Amorim, a medida é bastante preocupante, uma vez que a crise financeira internacional de 2008 aconteceu justamente por essa razão: cidadãos americanos tomavam créditos sucessivos concedendo o mesmo imóvel como garantia, criando uma valorização irreal.

Outro ponto destacado pela representante do Idec diz respeito à possibilidade de renegociação coletiva de dívidas, prevista pela Lei do Superendividamento, em vigor há quase um ano. Segundo ela, tal previsão não é válida para os contratos de crédito com garantias reais, como é o caso dos bens imóveis.

"Ou seja, o consumidor que contrair um empréstimo nesses moldes tem menos chances de renegociar a dívida, aumentando a possibilidade de superendividamento", concluiu.

O texto aprovado na Câmara prevê a criação de um serviço de gestão especializada por meio das Instituições Gestoras de Garantia (IGGs), a serem regulamentadas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). Caberá às IGGs avaliar o valor das garantias dadas e, com base nesse valor, as instituições financeiras poderão definir um montante adequado de crédito a ser tomado pelo interessado.

Além disso, ficará a cargo dessas empresas, entre outras atribuições, a venda de bens, caso a dívida seja executada.

Para o especialista em Direito do Seguro e sócio do escritório Ernesto Tzirulnik Advocacia, Vitor Boaventura, o marco das garantias é uma falsa promessa de melhoria das condições de acesso ao crédito para a população. Segundo ele, o Congresso Nacional aceita há anos e passivamente a cobrança de juros exorbitantes da população vulnerável e de menor renda.

"Lamentavelmente, o que se criou foi mais um instrumento que beneficia as instituições financeiras em detrimento da população que, pressionada pela redução na renda e a inexistência de políticas efetivas de acesso ao crédito, se vê cada vez mais superendividada para sobreviver. Ao permitir que um imóvel seja oferecido como garantia a mais de uma instituição financeira, o projeto ameaça o equilíbrio sistêmico, o que poderia fragilizar ainda mais a combalida economia brasileira", afirmou.

Advogado e ex-diretor do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça, Ricardo Morishita avalia que o acesso ao crédito é importante, assim como medidas que possam reduzir os juros. No entanto, acredita que o texto pode acelerar o endividamento no país.

"Pode ser uma medida que acabe acelerando a situação de superendividado, comprometendo ainda mais seus direitos. Caminhamos para transformar o direito à moradia em uma relação meramente de obrigações", disse Morishita.

Coordenador do Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Eduardo Chow defende a garantia da impenhorabilidade do bem de família. Ele argumenta que esta é uma forma de proteger o mínimo existencial da pessoa e a dignidade da vida familiar.

"Em um país subdesenvolvido e empobrecido, vilipendiar direitos mínimos dos mais carentes em favor dos mais ricos e poderosos, como os bancos, não parece ser uma forma adequada de avançarmos em direção à redução das desigualdades abissais em nosso país".

Chow enfatizou que o aumento de endividados e superendividados no Brasil, com os atuais índices de inadimplência, induzem inadequadamente a "soluções imediatistas', como forma de se viabilizar o aumento do crédito e a possível redução de juros.

Citou como exemplo a autorização de empréstimos consignados em auxílios assistenciais de pessoas miseráveis e, agora, a tentativa de acabar com a impenhorabilidade do bem de família.

"A longo prazo, a injustiça de decisões como essas acabam por penalizar somente os mais miseráveis de nossa sociedade, que perderão tudo o que possuem hoje para sobreviver em prol de um suposto juro reduzido que não irá beneficiá-los".