Novo Bolsa Família é injusto e deixa quem precisa de fora, dizem especialistas

A reformulação do programa, segundo a medida provisória publicada no Diário Oficial da União nesta terça-feira (dia 10)

Foto: Edu Andrade/ME
A reformulação do programa, segundo a medida provisória publicada no Diário Oficial da União nesta terça-feira (dia 10)

O Auxílio Brasil, novo programa social que pretende substituir o Bolsa Família, tem o objetivo de aumentar o valor dos pagamentos, assim como a base de beneficiários. No entanto, nenhum desses números foi definido ainda. O que se sabe até agora é que a reformulação inclui três modalidades para crédito, além de bônus adicionais de acordo, por exemplo, com desempenhos acadêmico e esportivo. Especialistas alertam que a nova estrutura tira o foco do essencial e poderá pagar mais dinheiro a quem precisa menos, deixando os mais vulneráveis à míngua.

No Bolsa Família, existe um pagamento básico para famílias na extrema pobreza, ou seja, que têm renda de até R$ 89 por pessoa. Elas recebem o crédito também de R$ 89. É possível somar a isso os benefícios variados: de R$ 41 por cada criança, adolescente de até 15 anos, gestantes ou nutrizes, com limite máximo de cinco beneficiários por casa; ou de R$ 48 para jovens de 16 e 17 anos, com limite de dois pagamentos por família. Caso, mesmo recebendo esses pagamentos, a família não atinja a renda de R$ 89 por pessoa, tem direito a um complemento para sair da faixa da extrema pobreza. Já os grupos familiares considerados pobres, que têm renda entre R$ 89 e R$ 178 por membro, recebem apenas os benefícios variados, sem o pagamento básico.

A reformulação do programa, segundo a medida provisória publicada no Diário Oficial da União nesta terça-feira (dia 10), estabelece três modalidades para o benefício. Uma para primeira infância, destinada às famílias que possuam em sua composição crianças de até três anos incompletos, pago por integrante que se enquadre em tal situação; outra destinada a famílias com jovens de até 21 anos de idade; e a última para famílias da extrema pobreza, ainda que não tenham filhos.

Para a ex-secretária nacional adjunta de Renda de Cidadania do governo federal, a socióloga Letícia Bartholo, a mudança pode parecer que oferece uma simplificação do sistema, mas tem problemas. Um deles é não estabelecer critério para o que vai ser considerado como pobreza e extrema pobreza, e outro é não definir os valores que serão pagos pelo benefício. Assim, o que antes era fixado por lei, poderá ser decidido por decreto.

"A MP não toca nas fragilidades, de modo que a gente fica quase sem materialidade para avaliar o impacto na pobreza", critica.

Apesar do presidente Bolsonaro ter anunciado a intenção de pagar R$ 400, há uma queda de braço entre a ala política e a econômica do governo. O presidente da Câmara, Arthur Lira afastou a ideia na semana passada. Ele disse que "o Bolsa Família virá dentro do teto de gastos, com um valor médio planejado em torno de R$ 300”. Também há expectativa de que 2 milhões de novos beneficiários sejam incluídos, mesmo sem nada ter sido definido ainda.

Sandro Maskio, coordenador de estudos do Observatório Econômico da Universidade Metodista da São Paulo (Umesp), avalia que, no atual cenário brasileiro, com crescimento do desemprego e aumento dos custos de vida, como alimentos e energia, nem o valor, nem o tamanho do programa seriam suficientes para combater a desigualdade. Embora o crescimento econômico e a geração de oportunidades de trabalho é que possam trazer um horizonte mais animador, ratifica que ações de auxílio são sempre importantes, com efeitos imediatos, de curto e médio prazo.

Bônus desviam o objetivo

Além do pagamento básico, o novo programa social terá seis tipos de bônus, que poderão ser acumulados, como a bolsa iniciação científica júnior, paga em 12 parcelas a estudantes com bom desempenho em competições acadêmicas e científicas; o auxílio esporte escolar, para estudantes de 12 a 17 anos que se destaquem em jogos escolares brasileiros; e o auxílio criança cidadã, no caso de criança até dois anos incompletos que não encontre vaga em creches públicas ou privadas da rede conveniada; o auxílio inclusão produtiva rural, pago por 36 meses a agricultores familiares inscritos no Cadastro Único; o auxílio inclusão produtiva urbana, para quem estiver na folha de pagamento do Auxílio Brasil e comprovar vínculo de emprego formal; e o benefício compensatório de transição, para famílias cadastradas no Bolsa Família que perderem parte da remuneração após a transição para o novo formato.

Diante de tantos objetivos pulverizados, a socióloga Letícia Bartholo teme que o coração dessa política pública se perca. Ela acredita que o essencial é trabalhar numa cobertura mais generosa, com valor maior, porque o país segue muito aquém do que é necessário.

"Se o orçamento é curto, por menor que sejam esses bônus, vão estar tirando dinheiro do essencial. Não que eu seja contra as bonificações. Todo mundo quer esses incentivos. O problema é fazer isso dentro de um mesmo programa social", analisa: "O Bolsa Família, que atua com transferência de renda, saúde e educação e foi um dos programas mais bem avaliados do mundo, sempre funcionou por causa da sua simplicidade."

Para o economista da FGV Daniel Duque, associar o novo Bolsa Família à excelência esportiva ou acadêmica tira o foco do combate à extrema pobreza e faz com que o programa tenha o seu impacto reduzido. Segundo seus cálculos, nesses critérios, seriam poucas pessoas atendidas e, mesmo assim, seriam as que menos precisam dentro do grupo em potencial. Dessa forma, o Auxílio Brasil premiaria quem precisa menos, pagando altos valores, e destinaria aos mais vulneráveis as menores ajudas.

Duque ainda se opõe ao auxílio creche que, em sua visão, além de desincentivar os municípios a investirem em creches públicas por causa da existência de um benefício federal, também poderia estimular pais a deixarem seus filhos em casa, com a intenção de receber a gratificação, o que seria positivo para a família no curto prazo, mas não a longo para a criança. Por fim, desaprova o auxílio inclusão produtiva urbana:

"Todo mundo que estuda pobreza e desigualdade, sabe que se você tem carteira assinada, não está em situação de vulnerabilidade como outras pessoas no Brasil. Entendo a preocupação de não desincentivar a busca pelo emprego formal. Mas não há estudos que mostrem que isso acontece quando o benefício é oferecido."

Ao EXTRA, o Ministério da Cidadania disse que "o novo programa social prevê o fortalecimento da rede de proteção social e cria oportunidades de emancipação para a população em situação de vulnerabilidade". Também alegou que o trabalho leva em conta uma série de programas já existentes, entre eles, o Programa Bolsa Família (PBF) e que "o objetivo é ampliar o alcance das políticas sociais e atingir, com maior eficácia e responsabilidade fiscal, a missão de superar a pobreza e reduzir os efeitos da desigualdade socioeconômica".

Foco no indivíduo

A nova formatação do Bolsa Família foca em indivíduos específicos, ao invés de elevar a média global. A professora de Economia do Ibmec RJ Vivian Almeida explica que políticas de transferência de renda devem ter o princípio de horizontalização, isto é, beneficiar as pessoas para que saiam do programa. Por isso, condicionar incentivos a resultados já revelados significa subverter a ordem.

"Essa lógica de premiar os que já estão se saindo bem está sendo trazida para dentro do Auxílio Brasil. Mas e o resto? E quem fica pelo caminho? Até então, os pré-requisitos eram mais fáceis e traziam bem-estar social. Ter a carteira de vacinação em dia, e as crianças na escola. Agora, o critério vai passar a ser o resultado", observa Vivian.

A economista ainda opina que programas que permitam pessoas que não estão na base da extrema pobreza, mas que sem ajuda não conseguem avançar obtenham êxito, como Fies, política de cotas e bolsas de iniciação científica, são importantes. No entanto, devem ser desenvolvidos de forma separada.