Turismo: reclamações aumentam 427% na pandemia; especialista orienta consumidor
Dados do Ministério da Defesa apontam aumento sem precedentes no setor; maioria das queixas é contra agências de viagem
O último levantamento Consumidor em Números , da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) divulgado no mês passado divulgou crescimento de 427% das reclamações de consumidores a respeito do setor de viagens e turismo em 2020. Companhias aéreas, hotéis, eventos e agências de viagem. foram alvo de clientes como Felipe Cavalcanti, de 31 anos.
Em dezembro do ano passado, ele agendou uma viagem para Portugal pela agência de viagens MaxMilhas. Iria para a Irlanda. Mas com o aumento de casos de Covid-19 e as restrições à entrada de brasileiros em muitos países pela situação da pandemia, ele imaginou que não conseguiria um voo direto para Dublin.
Felipe embarcaria em fevereiro. Mas como a pandemia no país e a rejeição ao brasileiro no mundo só aumentaram, calculou que a primeira viagem pudesse ser cancelada. E foi. Ele, no entanto, não foi notificado pela MaxMilhas em nenhum de seus canais de comunicação. E só soube do cancelamento da passagem quando visitou o site da empresa e conferiu o status do seu pedido.
Desde então, Felipe tem tentado contato com MaxMilhas por suas redes sociais - a empresa não disponibiliza nenhum meio mais formal de reclamação. Ele conseguiu viajar, mas através de outra companhia (alguns dias após a entrevista feita pelo iG, a Maxmilhas entrou em contato com Felipe e propôs o ressarcimento pela passagem; o pagamento será feito até fevereiro de 2022).
“Eu quero meu dinheiro de volta porque eu paguei por um serviço que eu não usei. Eu já estou aqui [na Irlanda], não preciso de crédito de viagens. Preciso do meu dinheiro de volta. E vou entrar na Justiça pra isso”, diz.
Felipe é moderador de conteúdo em uma empresa na Irlanda. O processo seletivo foi no Brasil, mas para sair de vez do desemprego e ocupar o alto cargo, o administrador precisou viajar para a entrevista final e se instalar no país onde hoje trabalha.
Em empregos anteriores, ele conta que tinha que se deslocar bastante. A pandemia, entretanto, enxugou a quantidade de viagens internacionais em favor do home office . Por isso, adotou a medida trabalhista e sanitária recomendada, de só se deslocar de um país para outro em caso de extrema necessidade - não havendo outra alternativa. Foi este o caso.
Questões jurídicas
Paulo Ramos, o advogado consumerista que atende Felipe na demanda, explica que as empresas de viagem são obrigadas a notificar o usuário com pelo menos duas semanas de antecedência no caso de cancelamento.
“O princípio fundamental no Código de Defesa do Consumidor (art. 6º, III, do CDC) é o Direito Geral de Informar. Tentar resolver através do SAC é uma tarefa árdua, muitas vezes impossível. Comumente, nos deparamos com atendentes despreparados/desinformados sem a técnica necessária para resolver o problema”.
Ele conta que as agências de viagem que descumprirem as leis consumeristas podem e devem ser acionadas judicialmente. Geralmente, os pedidos estão relacionados a remarcação de pacotes de turismo (art. 20, inciso I, do CDC), devolução dos valores pagos (art. 20, inciso II, do CDC), dano material e dano moral.
Ramos diz que, até a Constituição de 1989, não havia qualquer tipo de legislação que protegesse o consumidor de qualquer serviço, por isso cabia ao fornecedor estipular as regras do jogo. A Constituição gerou uma série de avanços, ainda que o cenário seja muito diferente do que o de hoje.
Em 11 de setembro de 1990 o Brasil deu um grande passo nas relações consumeristas com a sanção da Lei 8078/90, o Código de Defesa do Consumidor. “Trata-se da aplicabilidade sobreposta com o dever de cuidar não somente de um cidadão, mas sim da coletividade. Logo, essa é a Lei que resguarda/embasa os direitos dos consumidores no Brasil”, diz Ramos.
Meu voo foi cancelado pela companhia aérea. Quero ser reembolsado no mesmo cartão que efetuei a compra. https://t.co/onaD9LFw2i
— Felipe.f (@Felipef33749206) February 24, 2021
Em nota, a MaxMilhas informou que a empresa continua lidando com inúmeros casos de cancelamento e remarcação de voos . “Além disso, muitos países seguem com restrições e constantes mudanças nas exigências de entrada de viajantes brasileiros, o que também tem afetado uma grande quantidade de voos”, diz a nota.
“Todos os canais de atendimento do setor de viagens e turismo continuam comprometidos. Na MaxMilhas não é diferente. Como intermediadores da venda de passagens, estamos atuando dentro das previsões da legislação e ante as regras das companhias para cancelar e remarcar as viagens. Além de concentrar nossos esforços em canais exclusivos, também aceleramos a automatização dos processos de cancelamento e alteração”.
Paulo Ramos adverte que, antes de ingressar com qualquer medida judicial, é importante que o consumidor já tenha esgotado as vias administrativas, e os Procons são excelentes aliados na resolução dos conflitos.
O assessor jurídico da Abav (Associação Brasileira de Agências de Viagem), Marcelo Oliveira, argumenta que as agências de viagem nunca trabalharam tanto quanto agora. Entretanto, ele diz que o segmento é “somente um dos ramos do setor do turismo”, e por isso “não podemos falar pelo setor todo, que tem sofrido muito”.
Oliveira aponta como causa da elevação do número de queixas o próprio passageiro que, segundo ele, “não entende ou não quer respeitar as medidas adotadas pelo Ministério do Turismo” e, por isso, têm dificuldades de negociar com as agências que fazem o intermédio entre os segmentos.
Ele ainda indica as falhas do levantamento da Senacon. Em sua avaliação, a pesquisa feita pelo Ministério da Defesa apresenta falhas de apuração, e que, se seguidos critérios mais rígidos de coleta de dados dos consumidores, as agências de viagem não seriam culpabilizadas pela crise.
Só no estado de São Paulo, o Procon-SP registrou que 75% das reclamações ligadas à Covid-19 são contra o setor de turismo . Agências de viagens somaram 3.986 (52%) do total das queixas, e companhias aéreas, 1.726 (25%). Só na capital, de março até o dia 20 de agosto de 2020, as multas somaram R$ 5 milhões.
Ramos aconselha que tanto o consumidor quanto o fornecedor de produtos e serviços precisam "fazer uso dos princípios norteadores da relação de consumo (boa-fé objetiva, função social do contrato, dever geral de informação e outros) para buscar o equilíbrio nos contratos, como uma forma de minimizar os prejuízos possíveis de todas as partes contratantes".