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Filipinas eram trazidas ao Brasil para trabalhar como domésticas, mas acabam submetidas a uma rotina de trabalho escravo
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Filipinas eram trazidas ao Brasil para trabalhar como domésticas, mas acabam submetidas a uma rotina de trabalho escravo

O empresário Leonardo Oscelavio Ferrada e sua empresa Global Talent foram condenados pelo juiz Luis Fernando Feóla, da 5ª Vara do Trabalho de São Paulo, a pagarem multa de R$ 2,8 milhões por integrarem esquema criminoso que envolvia  tráfico de pessoas e submissão de imigrantes a condições análogas ao trabalho escravo .

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Na decisão proferida no dia 9 de maio , a justiça entendeu que o empresário era corresponsável, tanto como pessoa física quanto como pessoa jurídica, pelo esquema que aliciou pelo menos 70 mulheres filipinas nos dois últimos anos com promessas de trabalho "irreais, impossíveis de cumprimento ante legislação brasileira", como o anúncio de que, após dois anos trabalhando, receberiam a residência permanente no país.

Como funcionava o esquema

Segundo ficou esclarecido pela justiça, as vítimas eram atraídas pela agência Servicos de Domesticas e Babas Internacionais Ltda do filipino Aguiar Noel Muyco. A partir do interesse delas, Muyco obtinha vistos para as trabalhadoras por meio de diversas fraudes para que elas conseguissem preencher os requisitos de mão de obra qualificada e entrassem no país.

Conseguindo vistos de trabalho, turismo e até de refugiados, as mulheres eram trazidas ao Brasil apenas com a promessa do emprego, ou seja, sem portarem o contrato de trabalho assinado como exige a convenção 201 da Organização Internacional do Trabalho.

Enquanto isso, o empresário brasileiro Leonardo Ferrada atraía o interesse de famílias brasileiras com alto poder aquisitivo ofertando empregadas domésticas com qualificações que os profissionais nacionais não conseguiam oferecer. Assim, ele convencia as famílias a investirem cerca de R$ 14 mil para trazerem mulheres filipinas para trabalhar nas suas respectivas casas.

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Reprodução/Facebook

Empregadas domésticas trazidas das Filipinas eram submetidas a trabalho escravo no Brasil

Num dos posts ainda presentes nas redes sociais , a agência diz que "encontrar uma profissional para cuidar da casa e da família é uma tarefa cada vez mais árdua para as famílias. A baixa qualificação e a alta rotatividade são algumas das experiências que as famílias brasileiras experimentam no dia a dia."

Dessa forma, a agência justifica que "no mercado internacional de profissionais domésticos, as de origem filipina são consideradas referência no quesito qualidade e custo-benefício. São profissionais reconhecidas pela afetuosidade, o zelo, organização, domínio de técnicas de cozinhar, excelência na atividade de limpeza e pelo zelo com as crianças" e finaliza dizendo "elas cruzam o mundo por salários melhores do que ganham em seu país e valorizam tal oportunidade recebida".

As Filipinas, por sua vez, são um dos maiores exportadores de mão de obra no mundo. Dados de 2014 revelaram que em apenas um ano 2,3 milhões de habitantes deixaram o arquipélago para trabalhar no exterior e fugir do desemprego. O governo local inclusive incentiva esse êxodo oferecendo cursos profissionalizantes gratuitos e recebe de volta o equivalente a 10% do seu PIB.

Onde começam os conflitos

A realidade, porém, se mostrou bem diferente. Além de terem de "pagar pela vaga" muitas vezes através de empréstimo que seria quitado com o salário recebido no exterior, uma das mulheres que prestou depoimento não conseguiu passar nem um mês na casa onde estava trabalhando.

Estou passando muito mal. É um grande trauma pra mim. Prefiro morrer do que confiar outra vez [nos meus antigos patrões]", disse uma doméstica filipina agenciada pela Global Talent

Ela chegou a mandar uma mensagem para o empresário dizendo, em inglês, no dia 17 de abril de 2017: "estou passando muito mal. Estou sem documentos, sem trabalho, sendo maltratada. É um grande trauma em mim." Numa outra, ela mesma disse "prefiro morrer do que confiar outra vez [nos antigos patrões]."

O empresário, por sua vez, passou a atuar como mediador de um acordo entre as partes. Ele concordou com o pagamento de uma passagem de volta, mas negou o pagamento pelos 26 dias trabalhados e escreveu, também em mensagem: "Concordo com a passagem de volta, mas com os 26 dias de trabalho, não". Na sequência, completou: "Do meu ponto de vista, você está sendo oportunista. Quero ajudar, mas está difícil."

Na sentença, o juiz Luis Fernando Feóla relata a "aflição de alguém que aventura-se noutro continente, confiando em alguém, para buscar a realização de um sonho" e na sequência encontra a "decepção" com condições de trabalho que "se inóspitas, se não receptivas, causam trauma."

Como agravante ele também menciona que "o trabalho nesta situação é muito mais vulnerável que outro, nacional por exemplo. O estrangeiro nada conhece, não tem ninguém para ampará-lo, confortá-lo. Se a situação que encontra no trabalho não lhe é satisfatória, sua aflição aumenta exponencialmente. Não há ninguém por perto para pedir ajuda, para se aconselhar."

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Versões e punições

Empregadas domésticas eram submetidas à rotinas de trabalho de até 16 horas e tinha direito de ir e vir, descanso e alimentação privados
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Empregadas domésticas eram submetidas à rotinas de trabalho de até 16 horas e tinha direito de ir e vir, descanso e alimentação privados

Em nota divulgada através do advogado, Leonardo Ferrada reiterou que "temos pleno respeito à decisão judicial, contudo, reafirmamos a total inocência da empresa Global Talent. Já apresentamos embargos declaratórios questionando alguns pontos da decisão judicial e, depois de julgados os embargos, apresentaremos recurso à instância superior visando a reforma total da sentença e a absolvição das reclamadas."

Vale dizer que o processo não entrava no mérito das condições de trabalho a qual as imigrantes eram submetidas. Ele julgava apenas as fraudes trabalhistas que fizeram com que essas pessoas fossem colocadas nessa situação em primeiro lugar. Dessa forma, além das multas de R$ 2,8 milhões aplicadas a Ferrada e a Global Talent e de R$ 7 milhões aplicada a Noel Muyco e a sua empresa, uma série de restrições de atuação também foram emitidas de modo a inviabilizar a continuidade do esquema.

Os valores deverão ser destinados 80% para "entidades filantrópicas de ilibada confiança da sociedade brasileira" como a Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), o Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer (GRAAC), a Associação de Pais e Amigos do Especiais (APAE) e ao grupo Doutores da Alegria.

Os outros 20% serão revertidos para programas de esclarecimento sobre os direitos do trabalhadores estrangeiros através de campanhas publicitárias educativas veiculadas preferencialmente em rádios dirigidas ao público da região metropolitana de São Paulo.

Ascensão e queda da Global Talent

Num vídeo publicado no YouTube, o empresário Leonardo Ferrada explica que a Global Talent surgiu a partir de uma conversa com um filipino numa viagem de avião para o Chile. Não fica claro se o filipino citado era Aguiar Noel Muyco, mas Ferrada explica que o indíviduo estava começando um projeto para levar profissionais filipinos para trabalhar no país sulamericano. A partir daí, o brasileiro achou que seria uma boa ideia começar algo parecido no Brasil.


Desde a ocasião, segunda a própria Global Talent, a empresa já trouxe mais de 100 mulheres para o país. A maioria era filipinas, mas houve casos também de vietnamitas. Sempre com a promessa de trabalhar em casas de família como domésticas com salários entre R$ 1.800 e R$ 2.000.

Numa reportagem feita pela Veja São Paulo em junho de 2017, uma doméstica filipina chamada Ilyn Saloloy deu entrevista afirmando que, no passado, tinha trabalhado na casa de uma família chinesa em Singapura na qual fazia jornadas diárias das 4h às 21h.

"Descontente" com o emprego, mas diante da necessidade de enviar dinheiro ao país natal, ela largou tudo e veio para o Brasil quando conheceu o representante de uma agência de funcionários domésticos e descobriur as "vantagens" oferecidas no país. Ela relata que o agente contou pra ela que aqui a carga horária seria menor e o salário, maior.

Na ocasião ela trabalhava, feliz, num sobrado de 350 metros quadrados em um condomínio fechado no bairro do Morumbi, zona sul de São Paulo, fazendo faxina e cuidando de três crianças e dois cachorros e tinha, até, ganhado um apelido da patroa, a professora de inglês Juliana Mendes: Lili.

Um apelido também foi dado para Realiza Santandan, uma outra empregada doméstica filipina que foi entrevistada pela Folha de S. Paulo em 2015. "Liza" não falava português, mas trabalhava na casa da executiva Kely Alves, na zona oeste de São Paulo. O idioma, porém, não era um empecilho para a patroa que declarou, na ocasião, "a língua é o de menos: passaram mais de dez babás por aqui e nenhuma dava certo, porque ficavam de má vontade. A Liza está sempre bem humorada e eu preciso até pedir para ela parar de trabalhar; o povo filipino gosta de servir."

Em outro caso citado pela reportagem, a filipina Amy Villariez também relatou situações degradantes no seu emprego anterior. Ela era impedida de usar o wi-fi da casa que trabalhava em Singapura, só comia o que sobrava e não podia nem colocar o celular para carregar que os patrões reclamavam do gasto de energia.

No Brasil, babá é só babá, cozinheira só cozinha e empregada só limpa", queixou-se uma patroa que contratou uma filipina para trabalhar em sua casa em 2015.

Uma vez no Brasil, trabalhava para a advogada Thalita Assis, numa casa na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro, cuidando da casa com dois adultos e duas crianças. A patroa declarou na ocasião que tinha tido uma outra empregada filipina quando o casal morou fora do país por 11 anos. "Ela era incrível, fazia compras, limpava, cozinhava e dirigia. Ela até lavava o carro! No Brasil, babá é só babá, cozinheira só cozinha e empregada só limpa."

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Bem antes das denúncias de trabalho escravo , a reportagem da Folha também entrevistou Priscila Rocha Leite, sócia da agência Home Staff, que oferecia o serviço da Global Talent para as clientes da sua agência. Ela revelou que "a maioria dos que contratam são expatriados que querem uma empregada que fala inglês e brasileiros que moraram fora" e completou "as babás filipinas são tipo os médicos cubanos, mas sem pagar pedágio para o Fidel."

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